A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
Sou espírita. Mas comento agora com vocês que sempre estranhei a postura de alguns confrades, quando mencionam que não se compadecem de muitos casos de miséria, de falência humana e indigência moral alheia, alegando os imperativos cármicos desses indivíduos.
"Se estão nesta situação, alguma fizeram!" - costumam argumentar. E alguns inclusive arrematando com aquele post scriptum horrendo: "Quem tem pena é galinha! Pena por que?! Se algo de ruim fizeram (nesta ou em outra vida) têm mais é que pagar, e não sou eu quem vai se preocupar com isso!"
Minha percepção é a de que esta posição - para a surpresa de muitos que talvez pensem em contrário! - favorece a banalização crassa da violência que devasta com morbidez escatológica os nossos tempos. Pois isto justifica, entre tantas coisas, que não se dê esmola, sob o já gasto chavão de que não se deve dar o peixe ao necessitado, e sim oferecer-lhe condições de pescar. Porque sob os jargões desta bandeira, prosseguimos fechados em egoísmo cego e endurecido, e na comodidade do orgulho que nos impulsiona a não estendermos nossas mãos em gestos mais do que necessários de fraternidade e de compaixão para com o nosso próximo.
É, pois, em decorrência deste tipo de percepção desvirtuada, que o ser humano prossegue dia a dia mais insensível, mais frio, mais indiferente para com os problemas crônicos dos nossos tempos, dos quais de modo algum nos vemos isentos de experimentá-los em nossa própria pele, no repertório sempre inédito quanto surpreendente que eventualmente nos aguarde num futuro mais ou menos longínquo, testando em nós mesmos valores e forças!
Durante as últimas semanas, mergulhada em debates ocasionais acerca do assunto do dia, que consome toda a sociedade brasileira em manifestações de repúdio e de estarrecimento desencontrados, ousei externar, n'alguns momentos, um modo de ver as coisas que urgiu explanação detalhada e clara a respeito dos móbeis dos meus sentimentos e pensamentos, a fim de não incorrer em mal entendidos quiçá de molde a permitir interpretações errôneas, que me situassem, aos olhos alheios, como alguma louca que endossa a selvageria, a crueldade e o crime francamente hediondo.
Eventualmente, ontem, em vendo aquela desgraçada criatura entrando na viatura policial em estado moral misérrimo; visivelmente em perfil crônico de pânico, a externar-se claramente nas lágrimas de desespero quanto ao seu destino próximo; alvejada selvagemente por dezenas de câmeras televisivas e por flashes fotográficos, como animal acuado; cercada de uma avalanche de mais de oitocentas pessoas ávidas de justiça, algumas, e de vingança, muitas, além dos incontáveis policiais no exercicio brutal quanto enérgico do seu dever ; aparteada dos filhos, um em desmame precoce, outro entregue aos cuidados dos avós maternos... ao presenciar aquela cena impressionante, assenhoreou-me um sentimento que até a mim surpreendeu: o de compaixão!
Surpreendeu-me, caríssimos - porque, humana que sou, e mãe, e como toda a sociedade, também há um mês sofro com sinceridade com toda esta pavorosa história de terror, assim como sofri outrora, há bem pouco tempo, com a do menino João Hélio. Há um mês faço preces periódicas, no silêncio escuro do meu quarto, no instante do meu recolhimento - preces sentidas em intenção da menininha martirizada e na dos seus familiares maternos, mãe e avós. Só que ontem, amigos, emergiu espontaneamente um impulso de oração também por este casal tão imerso em terrores internos e externos! Assomaram inesperadamente lágrimas aos meus olhos, pelas profundas fraquezas humanas que ocasionalmente determinam um volume tão inacreditável de sofrimento desnecessário, de escuridão interior, de angústias, de molde a sucumbir pessoas ainda tão jovens em autêntico pesadelo desperto, num incomensurável inferno aqui mesmo, na face da Terra!
Quando, portanto, mencionei compaixão por Ana Carolina Jatobá, quis fazer significar compaixão pelo estado mais absoluto de falência humana e de obscurantismo espiritual! Porque, em tendo em vista os moldes ideais de humanidade que volta e meia - e talvez que de dentro de um tanto de hipocrisia, vamos admitir - invocamos como os nossos melhores sonhos, será esta humanidade não feita de Anas Carolinas nem de Alexandres Nardonis! Não, mesmo, de mendigos e de indigentes passando fome, frio e necessidades diante da nossa indiferença impotente e mais ou menos consciente - e isto é um outro tipo, sutil porém igualmente funesto, de violência! Não da infinidade de casos ferozes de agressão contra tantas outras crianças, de incestos delituosos, de desespero e de desnorteamento do ser humano perdido nos caminhos aparentemente sem volta dos crimes!
Não, meus amigos! Não é este o mundo dos nossos alegados sonhos, e se intentamos ser coerentes com o que dizemos pretender, não poderemos nunca nos regozijar com o choro desesperado daquela jovem mulher num camburão policial! Por mais não resida naquelas lágrimas arrependimento, é bem possível - mas pânico, e ainda uma vez egoísmo pelo que há de vir, sem qualquer laivo de remorso pela pequena vida sacrificada!
Se planejamos o mundo ideal que todos queremos, deveremos, sim, nos indignarmos pela morte martirológica de uma pequena criança, um anjo, e nos solidarizarmos na dor com todas as vítimas destas tragédias profundamente lastimáveis - mas também lamentarmos todas as Anas Carolinas em estado absoluto de desolação espiritual; todos os Alexandres Nardonis cujos perfis incompreensíveis quanto assustadores de personalidade se forjaram sob a lápide implacável das contradições da nossa era insensível, encastelada no império sem alma do ter acima do ser!
Para que exista este mundo, com efeito, meus amigos, precisamos reaprender a sermos humanos: e isto implica - sim! - em se compadecer da trevosa falência alheia; das necessidades dos indigentes e dos famintos, cuja fome e carências não pedem elaborações intelectuais a longo prazo acerca de oportunidades de futuro - mas amparo imediato, e alimento!
Valores e qualidades humanos, se queremos resgatar, n'algum futuro possível, um mundo humano! E tais requisitos passam obrigatoriamente pela capacidade de sentir amor e compaixão pelo próximo; pelo se reconhecer que os sofrimentos, as fraquezas, a vida que lateja no íntimo de cada um dos bilhões de seres ao redor do globo são nada mais nada menos que atributos de todos nós!
Só assim será possível um despertamento definitivo para a necessidade crucial da banalização do valor supremo da vida humana - e não da violência nefanda que a todos avilta e extermina, implacável e paulatinamente, seja na posição de criminosos, seja na dos que se comprazem nas misérias e na condenação impiedosa dos deslizes do seu próximo - por maiores que sejam!
Com carinho.
Sou espírita. Mas comento agora com vocês que sempre estranhei a postura de alguns confrades, quando mencionam que não se compadecem de muitos casos de miséria, de falência humana e indigência moral alheia, alegando os imperativos cármicos desses indivíduos.
"Se estão nesta situação, alguma fizeram!" - costumam argumentar. E alguns inclusive arrematando com aquele post scriptum horrendo: "Quem tem pena é galinha! Pena por que?! Se algo de ruim fizeram (nesta ou em outra vida) têm mais é que pagar, e não sou eu quem vai se preocupar com isso!"
Minha percepção é a de que esta posição - para a surpresa de muitos que talvez pensem em contrário! - favorece a banalização crassa da violência que devasta com morbidez escatológica os nossos tempos. Pois isto justifica, entre tantas coisas, que não se dê esmola, sob o já gasto chavão de que não se deve dar o peixe ao necessitado, e sim oferecer-lhe condições de pescar. Porque sob os jargões desta bandeira, prosseguimos fechados em egoísmo cego e endurecido, e na comodidade do orgulho que nos impulsiona a não estendermos nossas mãos em gestos mais do que necessários de fraternidade e de compaixão para com o nosso próximo.
É, pois, em decorrência deste tipo de percepção desvirtuada, que o ser humano prossegue dia a dia mais insensível, mais frio, mais indiferente para com os problemas crônicos dos nossos tempos, dos quais de modo algum nos vemos isentos de experimentá-los em nossa própria pele, no repertório sempre inédito quanto surpreendente que eventualmente nos aguarde num futuro mais ou menos longínquo, testando em nós mesmos valores e forças!
Durante as últimas semanas, mergulhada em debates ocasionais acerca do assunto do dia, que consome toda a sociedade brasileira em manifestações de repúdio e de estarrecimento desencontrados, ousei externar, n'alguns momentos, um modo de ver as coisas que urgiu explanação detalhada e clara a respeito dos móbeis dos meus sentimentos e pensamentos, a fim de não incorrer em mal entendidos quiçá de molde a permitir interpretações errôneas, que me situassem, aos olhos alheios, como alguma louca que endossa a selvageria, a crueldade e o crime francamente hediondo.
Eventualmente, ontem, em vendo aquela desgraçada criatura entrando na viatura policial em estado moral misérrimo; visivelmente em perfil crônico de pânico, a externar-se claramente nas lágrimas de desespero quanto ao seu destino próximo; alvejada selvagemente por dezenas de câmeras televisivas e por flashes fotográficos, como animal acuado; cercada de uma avalanche de mais de oitocentas pessoas ávidas de justiça, algumas, e de vingança, muitas, além dos incontáveis policiais no exercicio brutal quanto enérgico do seu dever ; aparteada dos filhos, um em desmame precoce, outro entregue aos cuidados dos avós maternos... ao presenciar aquela cena impressionante, assenhoreou-me um sentimento que até a mim surpreendeu: o de compaixão!
Surpreendeu-me, caríssimos - porque, humana que sou, e mãe, e como toda a sociedade, também há um mês sofro com sinceridade com toda esta pavorosa história de terror, assim como sofri outrora, há bem pouco tempo, com a do menino João Hélio. Há um mês faço preces periódicas, no silêncio escuro do meu quarto, no instante do meu recolhimento - preces sentidas em intenção da menininha martirizada e na dos seus familiares maternos, mãe e avós. Só que ontem, amigos, emergiu espontaneamente um impulso de oração também por este casal tão imerso em terrores internos e externos! Assomaram inesperadamente lágrimas aos meus olhos, pelas profundas fraquezas humanas que ocasionalmente determinam um volume tão inacreditável de sofrimento desnecessário, de escuridão interior, de angústias, de molde a sucumbir pessoas ainda tão jovens em autêntico pesadelo desperto, num incomensurável inferno aqui mesmo, na face da Terra!
Quando, portanto, mencionei compaixão por Ana Carolina Jatobá, quis fazer significar compaixão pelo estado mais absoluto de falência humana e de obscurantismo espiritual! Porque, em tendo em vista os moldes ideais de humanidade que volta e meia - e talvez que de dentro de um tanto de hipocrisia, vamos admitir - invocamos como os nossos melhores sonhos, será esta humanidade não feita de Anas Carolinas nem de Alexandres Nardonis! Não, mesmo, de mendigos e de indigentes passando fome, frio e necessidades diante da nossa indiferença impotente e mais ou menos consciente - e isto é um outro tipo, sutil porém igualmente funesto, de violência! Não da infinidade de casos ferozes de agressão contra tantas outras crianças, de incestos delituosos, de desespero e de desnorteamento do ser humano perdido nos caminhos aparentemente sem volta dos crimes!
Não, meus amigos! Não é este o mundo dos nossos alegados sonhos, e se intentamos ser coerentes com o que dizemos pretender, não poderemos nunca nos regozijar com o choro desesperado daquela jovem mulher num camburão policial! Por mais não resida naquelas lágrimas arrependimento, é bem possível - mas pânico, e ainda uma vez egoísmo pelo que há de vir, sem qualquer laivo de remorso pela pequena vida sacrificada!
Se planejamos o mundo ideal que todos queremos, deveremos, sim, nos indignarmos pela morte martirológica de uma pequena criança, um anjo, e nos solidarizarmos na dor com todas as vítimas destas tragédias profundamente lastimáveis - mas também lamentarmos todas as Anas Carolinas em estado absoluto de desolação espiritual; todos os Alexandres Nardonis cujos perfis incompreensíveis quanto assustadores de personalidade se forjaram sob a lápide implacável das contradições da nossa era insensível, encastelada no império sem alma do ter acima do ser!
Para que exista este mundo, com efeito, meus amigos, precisamos reaprender a sermos humanos: e isto implica - sim! - em se compadecer da trevosa falência alheia; das necessidades dos indigentes e dos famintos, cuja fome e carências não pedem elaborações intelectuais a longo prazo acerca de oportunidades de futuro - mas amparo imediato, e alimento!
Valores e qualidades humanos, se queremos resgatar, n'algum futuro possível, um mundo humano! E tais requisitos passam obrigatoriamente pela capacidade de sentir amor e compaixão pelo próximo; pelo se reconhecer que os sofrimentos, as fraquezas, a vida que lateja no íntimo de cada um dos bilhões de seres ao redor do globo são nada mais nada menos que atributos de todos nós!
Só assim será possível um despertamento definitivo para a necessidade crucial da banalização do valor supremo da vida humana - e não da violência nefanda que a todos avilta e extermina, implacável e paulatinamente, seja na posição de criminosos, seja na dos que se comprazem nas misérias e na condenação impiedosa dos deslizes do seu próximo - por maiores que sejam!
Com carinho.