Algumas Reflexões sobre o Papel da Igreja Católica na Educação.
Algumas Reflexões sobre o Papel da Igreja Católica na Educação.
Há exatamente 40 anos atrás, estava eu, como vocês agora, iniciando meus estudos de ciências sociais, ouvindo a aula inaugural dos cursos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, proferida pelo saudoso e eminente jurista, o professor Haroldo Pereira Valadão, respeitado por suas obras, mestre e estudioso do direito internacional privado.
Os salesianos, responsáveis por esta obra que hoje aqui se inaugura, religiosos e religiosas da ordem criada por São João Bosco, em alguns momentos, movidos pela bondade que os caracterizam, cometem atos de verdadeiro desatino. Um desses atos é o que estamos presenciando neste momento: – numa cidade, num estado, numa região onde se encontram boa parte das melhores inteligências do país, resolvem convidar um gaúcho, professor em fim de carreira, para ter a responsabilidade de dizer algumas palavras de incentivo e orientação, palavras que estimulem alguma reflexão, na primeira atividade acadêmica desta casa de estudos superiores, que hoje inicia suas atividades, a Faculdade Salesiana do Nordeste. Sinto-me um privilegiado, honrado e muito emocionado.
Congregação religiosa secularmente dedicada à educação dos jovens, primeiro no norte da Itália onde foi criada, depois em todo o mundo, quis São João Bosco, o fundador, como indicação radical da mais importante característica de qualquer atividade educacional, que é a bondade para com quem se pretende educar, denominar o grupo de religiosos e religiosas que reunia, de salesianos. Honrava e recordava, assim, São Francisco de Salles, lembrado pela Igreja Católica como o Santo da Bondade. São João Bosco quis aconselhar, pelos séculos a fora, a todos os membros da congregação que criava, por este seu gesto de especial delicadeza e sentimento humanista, que o relacionamento digno, cordial, bondoso, entre mestres e alunos deveria ser a marca distintiva da sua abençoada obra. É de Dom Bosco esta frase: - “Darei tudo para ganhar o coração dos jovens e, assim, poder ganhá-los para o Senhor”.
À época, cerca de 1850, foi uma verdadeira revolução pedagógica já que os castigos físicos, a rígida disciplina atemorizante, onde os jovens quase não se dirigiam aos seus mestres, era a regra que imperava nas instituições de ensino, nas experiências de escolas publicas ou confessionais.
Hoje, em 169 nações, 16.000 salesianos se dedicam à causa da educação. Padres, irmãos e também irmãs, as Filhas de Maria Auxiliadora, mais conhecidas como irmãs salesianas de D. Bosco. Estas mulheres prosseguem com a obra iniciada pela Madre Maria Mazzarello, amiga do fundador, que na Turim de 1872, começava a se preocupar com a educação das meninas já que, naqueles tempos, rapazes e moças estudavam em instituições distintas.
Há mais de 100 anos os salesianos estão no Brasil, colaborando na formação deste nosso país, que, sem nenhum exagero triunfalista, formou-se, desde os seus primórdios, há 500 anos, nos bancos das escolas católicas, certamente até o final do séc. XIX. Os seguidores de D. Bosco iniciaram suas atividades em Niterói, em 1883. Em Recife, logo a seguir, em 1894, 6 religiosos italianos chegaram para começar com seu trabalho pedagógico. Lá se vão 107 anos onde experiências foram acumuladas, um contingente expressivo de ex-alunos passaram a testemunhar na sociedade, como cidadãos, além da sólida formação acadêmica, a visão cristã do Cosmo e da vida. Hoje, atentos aos sinais dos novos tempos, do milênio que se inicia, apontando de forma irrecorrível a necessidade de formação de nível superior dos nossos cidadãos e cidadãs, os salesianos, uma vez mais respondem positivamente às exortações da Igreja, aos reclamos da pátria e fundam a Faculdade Salesiana do Nordeste.
Na companhia das instituições de ensino católicas, que aqui já estão nesta cidade, também a trabalhar na educação de nível universitário, os padres jesuítas, as irmãs doroteias, cria-se, no Recife, uma poderosa massa crítica de reflexão, de pesquisa e de ensino. Junto com as demais instituições publicas e privadas, de nível superior do estado e da região, passará esta nova Faculdade a contribuir, dentro do sábio e democrático princípio da pluralidade de visões e abordagens da realidade, para o aperfeiçoamento do desenvolvimento integral do nosso povo, com uma nítida perspectiva de respeito à dignidade inerente à todos os seres humanos. Este aspecto, fundamento da Doutrina Social da Igreja, se traduz, concretamente, por uma ordem social de convivência onde predomine o bem comum, a liberdade, a justiça, a solidariedade, o estado democrático de direito e a paz.
Desde há muitos séculos, desde os tempos apostólicos, a Igreja já intuíra esta verdade que praticava com extraordinário denodo missionário, fato esse que o Concílio Vaticano II consagraria em 1965, na Declaração Conciliar Gravissimum Educationis, que no seu proêmio afirma: “O sagrado Concílio considerou atentamente a gravíssima importância da educação na vida do homem e a sua influência cada vez maior no progresso social do nosso tempo”. E logo a seguir, a mesma declaração, ensina, (nº 1): “Todos os homens, de qualquer estirpe, condição e idade, visto que gozam da dignidade de pessoa, têm direito inalienável à educação,...A verdadeira educação, porém, pretende a formação da pessoa humana na ordem ao seu fim ultimo e, ao mesmo tempo, ao bem das sociedades de que o homem é membro e em cujos os ofícios, uma vez adulto, tomará parte”.
O Pontífice reinante, S. S. João Paulo II, esta figura notável de pastor e de intelectual, indiscutivelmente o personagem central da história da humanidade nas ultimas décadas, em duas ocasiões manifestou-se, com a clareza e a objetividade que lhe são peculiares - na visita à UNESCO em 1978 e na Constituição Pastoral Ex Corde Eclesiae, de 1991, sobre as universidades católicas - advertindo que não só o destino do mundo, mas também o da Igreja, estava sendo jogado na possibilidade de se prosseguir e de se garantir o dialogo da cultura com a fé, (nº 3). Para nós educadores, dirigentes de instituições católicas de ensino, este é o nosso grande, o nosso maior desafio. De certa forma vós, alunos da 1ª turma da Faculdade Salesiana do Nordeste, e as turmas subseqüentes, também estão sendo convocados, desde já, para participarem desta inquietação intelectual. Inquietação construtiva, provocadora de idéias, motivadora de ações coletivas, capaz de reunir em torno de debates civilizados pessoas de várias correntes de pensamento, de várias religiões, de vários níveis de saber, numa progressiva tarefa, inesgotável, de se explicitar, permanentemente, este mistério que é a pessoa humana, em todas as suas manifestações, em todas as suas exigências.
João Paulo II, com suas Encíclicas, pronunciamentos vários, leitura obrigatória para todos os sacerdotes, religiosos e religiosas, leitura de real importância intelectual para os professores e professoras que se dedicam à atividade acadêmica em instituições católicas, entre outras, promulgou duas importantes Encíclicas – a Veritatis Splendor, o Esplendor da Verdade, sobre as exigências da lei natural, em 1993, e, recentemente, em 1998, a Encíclica Fides et Ratio, Fé e Razão, onde se dedica a refletir sobre a complementaridade da fé e da razão, demonstrando que atualmente, no âmbito das atividades intelectuais da Igreja Católica e dos cristãos, não há ambiente para a oposição entre a fé que nos anima e a pesquisa científica que busca a verdade, em todos os campos do saber. É certo que as instituições católicas praticam este mister com perspectiva e método próprio, de explicitação continua do saber, porque acreditam, em primeiro lugar, que a Verdade Suprema já foi revelada, Verdade essa da qual todas as demais verdades decorrem e se subordinam. Esta é a missão da Igreja no campo da cultura, no campo do saber – trazer para o debate específico de cada ciência a luz do Evangelho, bem como oferecer todo o acervo de saber que amealhou, em séculos de estudos e reflexão, nas suas universidades, faculdades, conventos e seminários, na perspectiva da necessária visão conjunta e unitária do Cosmo. Este é um direito e uma obrigação da Igreja Católica, como também é um direito e um dever de todas as demais confissões religiosas de procurar, sempre, tocar a realidade do dia a dia com sua visão própria do ser humano, da história e do Universo.
Os homens e as mulheres, aturdidos pelos contrastes sociais e as vertiginosas transformações, de toda ordem, que ocorrem em nossos dias, esperam, com razão, que as religiões históricas apontem caminhos alternativos para a humanidade, orientem reflexões sobre o futuro do ser humano, critiquem os atentados à lei natural que vêm sendo praticados, que, enfim, assumam com clareza o papel de referencia estável no processo civilizatório que, no momento atual, vive uma crise sem precedentes.
Creio que recordar Santo Agostinho, do século IV, e Santo Anselmo, do século XII, ambos Doutores da Igreja, é importante nesta aula inaugural. Os dois apontaram prática intelectual, capaz de orientar quaisquer estudos, quaisquer pesquisas. Pode-se resumir o que pensavam da investigação intelectual, recordando uma exortação dos seus escritos – “credo ut intelligam”, crer para entender. Santo Anselmo, insiste, detalhando o pensamento de Santo Agostinho – “crer para entender e não entender para crer”. Não se trata, como alguns pensam, de um aconselhamento apenas para os debates teológicos e filosóficos. Trata-se de uma indicação de método de trabalho que é útil na investigação e no estudo de qualquer ramo do saber. Os críticos da Igreja sempre afirmam, ser esta uma posição autoritária, impositiva. Não, não é. É, antes de tudo, um método de trabalho, uma forma de se pensar, onde se verifica que, se anteriormente a qualquer honesta investigação, já se nega o resultado antes do mesmo ser obtido, nada de profícuo redundará daquela atividade acadêmica. Em qualquer ramo da atividade humana é preciso acreditar, crer em alguma coisa, fortemente, e perseguir com honestidade intelectual a investigação da sua hipótese de trabalho. No debate com os seus pares, estar pronto, para a cada instante demonstrar como e porque os resultados ou as conclusões esperadas estão se verificando, bem como verificar se também estão sendo aceitas pela comunidade de sábios de que faz parte. Ter sempre a mente aberta para rever os resultados, refazer as hipóteses de trabalho, reiniciando sempre a estimulante procura da verdade. Mas nunca permitir que a descrença, a negação, seja o início, o ponto de partida de quaisquer obras, principalmente as obras do pensamento.
Com estas palavras iniciais deixo claro a minha posição, como leigo participante da obra educacional da Igreja, há muitos anos, de que esta obra não é o produto do esforço isolado de uma Congregação, de uma Diocese, de um grupo de cristãos bem intencionados. Este esforço funde-se numa ação maior, mais abrangente, continuada, consciente e determinada, verificável em todos os continentes, de que a Igreja não abre mão do direito de estar presente, como “mãe e mestra”, como “perita em humanidade”, (no dizer de S. S. Paulo VI), na formação da juventude, na pesquisa científica, no debate cultural, no aperfeiçoamento do processo civilizatório do qual o Cristianismo é o maior protagonista. Julgo que vocês que hoje iniciam seus estudos superiores, poderiam guardar, para reflexão posterior, a afirmação de Fernand Blodel, ilustre historiador francês, já falecido. Afirma Blodel, na sua obra Grammaire des Civilizations, que “a Europa tem sangue cristão”. Que o europeu, mesmo quando se proclama agnóstico, preserva uma série de valores éticos, que tornaram possível a civilização européia e, por decorrência, a chamada civilização ocidental, hoje predominante em todo o mundo.
Neste processo histórico muitas injustiças, dominações e exclusões foram cometidas e consolidaram-se, como estruturas sociais opressoras, na maior parte do nosso planeta. É lamentável constatar que parcela considerável dessas injustiças foram feitas em nome da civilização ocidental, com a conivência e até com a participação ativa de cristãos e da Igreja, como Instituição humana. Mas também é inegável que tal ambiente propiciou o extraordinário progresso humano, social, econômico, artístico, científico e tecnológico que expressiva parte da humanidade desfruta, com real proveito para as suas vidas, um fato positivo na história do processo civilizatório. No entanto, o interessante, a novidade a ser anotada para reflexão futura, é que esse substrato de valores cristãos – a liberdade, a justiça, o bem comum, a solidariedade, a democracia, o desenvolvimento integral, a paz - é que veio propiciar as condições de crítica e de não aceitação das distorções que se procederam, no decorrer dos séculos. Esses valores basilares foram e continuam a ser valores cristãos e foram proclamados, difundidos e sedimentados culturalmente pelo cristianismo, aqui entendido como movimento histórico. Seria impossível pensar no estado democrático de direito, por exemplo, sem que antes da atividade política de implantação desta forma superior de convivência, valores cristãos tais como a dignidade inerente aos homens e as mulheres, o direito das crianças, o valor da família, da liberdade, a virtude da justiça, a igualdade das pessoas, a supremacia da verdade, da solidariedade e da paz, já não existissem e fossem aceitos como padrão ideal de vida coletiva. Atualmente muitos autores, filósofos, historiadores e cientistas sociais, afirmam que o próprio marxismo só prosperou com a força e expressão histórica que teve, até recentemente, com sua mensagem de exaltação da supremacia do social e da igualdade dos homens, por conta do campo fértil que já encontrou, receptivo, preparado pela pregação secular do cristianismo, na mente das pessoas e nas estruturas sociais. Foi um amplo movimento cultural que agiu ao longo dos séculos como que se estivesse implantado, de forma irreversível, na maneira de ser dos povos, no inconsciente coletivo das civilizações, a idéia da dignidade inerente do ser humano, seus direitos inatos e inalienáveis.
Esta é uma mensagem própria do cristianismo, esta é a mensagem da nossa revolução social, esta foi a grande inovação que o cristianismo introduziu no processo histórico, esta é a herança que temos de preservar e fazer prosperar. Certamente com o cientificismo e o laicismo que se iniciaram com a Revolução Francesa, no séc. XVIII, prosperando sobremaneira no séc. XIX, as Igrejas Cristãs perderam muito da sua influência e suas mensagens de fé deixaram de seduzir, com o ardor do passado, os corações e as mentes dos povos. Hoje o cristianismo, fundamento da civilização Ocidental é contestado e criticado por expressiva parcela dos cidadãos e instituições desta mesma civilização, gerando uma crise sem precedentes na história. Crise global, diria eu, pois os paradigmas maiores que iluminaram a trajetória da humanidade, desde os tempos da primeira tradição judaico-cristã, deixaram de ser reconhecidos como lei natural fonte do direito positivo, como valores éticos a serem preservados, como base que permitiria a convivência em sociedade, de forma civilizada. Para o vazio que se formou nada de consistente foi criado ou oferecido e a humanidade, cada vez mais, debate-se sem rumo ao sabor dos acontecimentos. Não pairam duvidas nos estudiosos dos nossos tempos que o cristianismo, hoje, já é uma contracultura. Uma contracultura pois insiste em preservar e pregar, por fidelidade a mensagem do Evangelho, as mesmas verdades naturais que, no passado, permitiram que se erguessem as grandes culturas, a civilização ocidental, as instituições democráticas, a codificação dos ideais da justiça no estado democrático de direito, a exaltação da liberdade da pessoa humana. Hoje, numa atitude suicida e tresloucada, os povos afastam-se, rejeitam a própria fonte de onde surgiram as premissas morais que sustentam a liberdade que desfrutam, a justiça que perseguem, a democracia que pretendem viver. Este viver o dia a dia sem uma referência permanente ao Transcendente, ao Absoluto, num adesismo irresponsável a um relativismo idiota, certamente conduzirá a humanidade, em futuro próximo, a uma situação de extremas dificuldades, tanto de convivência política como de sobrevivência física.
Jesus Cristo é o centro da mensagem do cristianismo. A pessoa humana é o centro do ensinamento social da Igreja. Para a continuidade desta hoje difícil missão, que envolve todos os homens e mulheres de boa vontade, mormente os jovens com sua natural curiosidade e disponibilidade, é que os salesianos, em perfeita sintonia com a Igreja, com o movimento ecumênico, com as expectativas das camadas mais sofridas de nossa população, criaram esta Faculdade e os convidam, a vós alunos, de hoje e os do futuro, a participar de seus trabalhos em prol da convivência da cultura com a fé.
Hoje se inicia, aqui no Recife, mais uma experiência educativa da Igreja Católica, num segmento de ensino superior, universitário, no alvorecer do III milênio. São cursos que se dedicarão a formar, neste início, administradores, contadores e especialistas na promoção e na operação do turismo. Logo seguir-se-ão os cursos de Direito e de Filosofia. O que poderia dizer a vocês que seja de utilidade nesta fase de suas vidas que se inicia? Ocorre-me uma série de pensamentos mas é prudente que não procuremos exaurir muito deles numa primeira aula – seria cansativo...
Após esta já longa introdução ao tema desta aula inaugural, selecionei três pontos que gostaria, ainda, de abordar e refletir, por alguns minutos. Refiro-me à questão da qualidade do ensino, à necessidade de permanente atualização profissional, e o inescapável compromisso social das faculdades e universidades, nos nossos dias.
É louvável que a sociedade como um todo, o Estado, estejam, não só no Brasil mas também na maioria dos países, preocupados com a qualidade da educação que é oferecida nas escolas, faculdades e universidades. Sistemas de avaliação, públicos e privados, estão sendo promovidos não só como uma satisfação à sociedade, mas principalmente como indicadores de ação para as instituições aperfeiçoarem, permanentemente, seus métodos de ensino e pesquisa. Instalações, laboratórios, bibliotecas são exigências óbvias. A qualificação do corpo docente, com a exigência de pós-graduação em nível de doutorado e de mestrado, para aquele grupo de homens e mulheres que se propõe a ensinar, a pesquisar, de certa forma é uma novidade no Brasil. Somente nos últimos 40 anos é que se começou a exigir e a priorizar essas capacitações para o corpo docente. Este é um caminho sem volta. Muitas Universidades brasileiras já não mais aceitam como professores, mesmo os iniciantes, pessoas que não possuam diploma de doutoramento. Se tal esforço está sendo feito como exigência ao corpo docente, não podemos iludir mais os pais, os jovens que procuram a universidade e a sociedade, diplomando alunos que não obtiverem aquele mínimo de conhecimentos, de domínio de métodos de trabalho para exercerem, com responsabilidade e competência, suas profissões. O Brasil espera este comportamento, a sociedade, o povo mais sofrido, que é a maioria de nossa população, exige tal atitude.
Vocês iniciam um estágio de suas vidas que significa o fim de um caminho onde muitas dificuldades, de toda ordem, foram enfrentadas, mas outro caminho agora se inicia, com outro tipo de solicitação. Pode-se entender que o aluno tenha que trabalhar para garantir o seu sustento, pode-se entender as dificuldades de cansaço físico para o estudo depois de um dia de trabalho, pode-se entender as deficiências escolares anteriores nos cursos de nível médio e fundamental, as chamadas dívidas intelectuais. Mas nada disso pode desculpar a exigência de qualidade dos professores ao ensinarem e dos alunos e alunas de demonstrarem aproveitamento. O Brasil de hoje não aceita mais simples portadores de diplomas – o povo brasileiro quer profissionais competentes que colaborem eficazmente na superação dos nossos problemas sociais e econômicos. Fornecer diplomas, depois de algum tempo de comparecimento a um estabelecimento de ensino e o cumprimento de alguns rituais acadêmicos, sem uma rigorosa aferição de aproveitamento para a diplomação, é uma desonestidade intelectual que nenhuma instituição confessional pode partilhar. Nós denunciamos esta prática como imoral, escandalosa e maléfica para o futuro da nação.
Lembro sempre, em discussões semelhantes ao ponto que estamos abordando, a peça teatral de Joracy Camargo – “Deus lhe Pague” - peça encenada pela primeira vez lá pelos anos de 1920. Um falso e bem sucedido mendigo, pergunta a um jovem advogado desempregado: “o senhor sabe ler e escrever?, o jovem responde, ofendido – eu sou um bacharel, ao que o mendigo retruca – não foi isso o que perguntei, eu perguntei se o senhor sabe ler e escrever...”
O aspecto seguinte, a necessidade de permanente atualização profissional e acadêmica, vocês já devem ter lido nos jornais sobre o assunto. É extraordinário o que está se passando no mundo com o progresso da ciência e da tecnologia. A revolução, o impacto sobre a organização e funcionamento das sociedades, provocado pelo progresso das comunicações, da internet, ainda não está bem avaliado pelos estudiosos das ciências sociais. É tudo muito rápido, muito dinâmico, fazendo com que o quadro que se pretende examinar mude de configuração antes mesmo do estudo começar. Certamente vocês receberão a tradicional e insubstituível transmissão de conhecimentos, dos fundamentos do ramo do saber humano, que resolveram escolher como o futuro de suas vidas. Certamente serão transmitidos os métodos de estudo e de pesquisa que já foram testados por outros e se mostraram eficazes para tratar de determinado aspecto da realidade. Mas agora vocês precisam começar a estudar e a aprender os métodos de como estudar sozinhos e permanente. Talvez em futuro muito próximo o ensino superior seja dirigido, em boa medida, a fazer com que os alunos aprendam a pesquisar, nas bibliotecas, na internet, nos contatos insubstituíveis com os professores, mantendo-se, assim, permanentemente atualizados os seus conhecimentos profissionais, bem como aqueles conhecimentos necessários ao desempenho honesto e responsável dos deveres e direitos da cidadania. Hoje já se afirma que um físico, um químico, um médico, está desatualizado com 6 ou 7 anos de formado; um engenheiro com 12 ou 15 anos; e os que labutam na área das ciências humanas e sociais com cerca de 15 anos. A necessidade da educação permanente, como pratica intelectual rotineira, é, sem dúvida, um dos desafios mais sérios dos nossos tempos.
Por fim, quero chamar a atenção de vocês para um aspecto que, numa instituição de educação cristã, ressalta sobremaneira em importância. Trata-se da responsabilidade social que vocês alunos, vocês professoras e professores, vocês dirigentes, estão assumindo no momento do inicio das atividades da Faculdade Salesiana do Nordeste. Refiro-me à responsabilidade social das nossas faculdades e das nossas universidades para com os excluídos, para com a população mais pobre e miserável desta cidade, desta região, do país todo e porque não dizer, na era da tão decantada globalização, para com os miseráveis de todo o mundo. A fé cristã não se concretiza apenas na necessária oração de louvor a Deus. A fé cristã, por força da solidariedade inerente à natureza da pessoa humana, se explicita, também, no convívio da família, da comunidade de vizinhança, da comunidade de trabalho, enfim nas várias formas de comunicação e de contato com o próximo. Nós somos uma elite e não devemos nos envergonhar de sermos uma elite. Se pretendermos apenas o poder, em quaisquer de uma das suas várias formas de dominação, seremos execrados e condenados pelo futuro como traidores da nossa missão. Mas se entendermos, como devemos entender, a nossa condição de elite como responsabilidade para com os desvalidos, uma vez profissionais diplomados, aí sim cresceremos como seres humanos e honraremos o compromisso da promoção da pessoa humana, assumido pelo cristianismo há dois mil anos.
Hoje superamos a época romântica das grandes revoluções onde massas populares faziam cair Bastilhas, erguiam as barricadas na Paris revolucionária de 1848, tomavam o Palácio de Inverno em São Petersburgo. Hoje a necessária revolução social se fará amparada por dois vetores de ação, que deverão agir concomitantemente, organizadamente, no âmbito de um estado democrático de direito. De um lado a arraigada e esclarecida convicção ética da solidariedade, da justiça, da prevalência do bem comum, da liberdade, do desenvolvimento integral, da integração internacional sem dominação e da paz, na consciência política da maioria da população; de outro lado a competência técnica e científica, a organização política eficiente, a ação das organizações não governamentais, capazes de assegurar o emprego, a produção, bem como a retribuição a cada um ao esforço coletivo, de acordo com as naturais diferenças entre os cidadãos, mas garantido a todos os bens e serviços necessários a uma vida digna. Para que esta proposta ideal funcione o primeiro requisito a ser observado é, sem duvida, assegurar igualdade de condições e oportunidades a todos, o que significa dizer educação de qualidade para todos.
Na cidade onde a lembrança desta figura querida de todos nós brasileiros estará sempre presente – D. Helder Câmara – precisamos regar, sempre, a semente que lançou, anos atrás, quando proclamava para o século que se inicia, com aquele seu eterno sorriso de confiança na Providência Divina, com aquele seu entusiasmo e pureza de intenções – a proposta de um século sem exclusões. A este compromisso a Faculdade Salesiana do Nordeste, a Universidade Católica de Pernambuco, as Faculdades Franccineti do Recife, as Instituições de Educação Cristãs de todo o Brasil não poderão fugir. A este chamamento, vocês, estudantes agora, profissionais amanhã, de alguma forma terão de responder.
Aproveitem estes anos universitários. Curtam a vida que hoje se inicia pois é para vós, afortunados universitários, um período fantástico que sempre será lembrado com saudades. Guardem nas lembranças os bons momentos de estudo e de descobertas, fruam as amizades que surgirão, os namoros - quantos casamentos felizes nasceram nos campi universitários. Conversem, conversem muito, convivam com os seus colegas, com os professores e funcionários aproveitando todos os momentos para o intercâmbio de idéias e de experiências. Convivam com os demais universitários da região nos empreendimentos comuns. Não abandonem a fé e a preocupação com o Transcendente, com o Absoluto, com a procura de respostas para as perguntas que vêem impulsionando a humanidade desde os seus primórdios: o que sou? porque vivo? qual meu destino? porque existe algo e não o nada? Estejam atentos ao que se passa no Brasil e no mundo, de tal forma que possam se posicionar, com honestidade e inteligência, nas efervescentes discussões, que certamente acontecerão, sobre os mais variados assuntos. Não cultivem ódios e rancores, tenham a mente aberta para o novo, para o desconhecido. Participem das atividades esportivas, dos corais, das festas, tudo isso também faz parte da vida, da vida plena de uma juventude que começa, aqui e agora, uma nova fase enriquecedora de suas existências e que é, sem dúvida, uma fase muito, muito gostosa.
Muito obrigado pelo privilégio de estar aqui nesta inauguração da Faculdade Salesiana do Nordeste, proferindo a aula inaugural.
Felicidades.
Eurico de Andrade Neves Borba,
da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro; Secretario Executivo da
Associação Nacional de Mantenedoras
Escolas Católicas do Brasil - ANAMEC
Aula Inaugural da 1ª turma da Faculdade Salesiana do Nordeste, Recife, fevereiro de 2001.