Estigma astrológico de Escorpião
Dois personagens contemporâneos: Trimalquio, em Satíricon, obra de Petrônio de 63 d.C. e Adriano, o Imperador filósofo nascido em 76 d.C, revivido no romance da genial Marguerite Yourcenar, publicado em meados do século passado com base em 30 anos de rigorosa pesquisa.
Trimalquio é um escravo liberto, que declara não se envergonhar de ter feito as delícias do amo e se jacta de ter sido o preferido da ama, assim como de jamais ter assistido às lições dos filósofos. Ele herdou a
fortuna do amo e, dedicado aos negócios, logrou fazer-ze riquíssimo.
Trata-se de homem ostentoso, cabotino e limitado ao senso comum.
Adriano é dotado de intelecto acima da média e requintado senso crítico.
Trimalquio oferece um banquete para exibir sua invejável riqueza. Ele faz o discurso astrológico banal e focado na apologia de seu próprio signo em detrimento dos demais; é particularmente seco quando qualifica os nativos de Escorpião como envenenadores e assassinos. Esse o estigma reducionista que pesa sobre os nativos de Escorpião ainda em nossos dias, acrescido da ênfase em seu especial interesse por sexo e mistérios da morte e na sua lamentável vulnerabilidade à possessividade e ao ciúme.
Yourcenar, na voz de seu personagem Adriano, aborda o tratamento ao amor erótico conforme as correntes filosóficas de época, a exemplo dos cínicos e moralistas. Introduz aí a convergência entre sexo e morte (presente na expressão idiomática francesa para orgasmo: "la petite mort", que indica o amor erótico como veículo para a experiência de morte iminente, no momento da entrega do corpo ao delírio); mas a abordagem de Yourcenar confere à união erótica uma certa transcendência, pois associar o amor exclusivamente aos deleites físicos soa, ao Imperador, improvável, visto que não se vê um gastrônomo chorar diante de uma iguaria como o amante ao ombro amado.
Tanto os filósofos cínicos como os moralistas são contestados pela reflexão que Adriano desenvolve. Pois lhe parece que os sábios reduzem o amor aos prazeres grosseiros como o comer e o beber (que embora mais imprescindíveis que o intercurso sexual, não ostentam tamanha intensidade quanto este) por receio de perdição e sujeição. Esse desprezo dos ilustrados pelo amor não é acatado pelo Imperador: sua preferência é pela tradição popular, que considera o amor erótico como uma iniciação nos mistérios secretos rumo à experiência do sagrado. De fato, a longa estrada que leva da preferência por um corpo ao amor de uma pessoa lhe parece digna de ser percorrida por um Imperador guerreiro e, mais, filósofo; que penetrou os segredos da vida quando esteve "cravado no corpo do amado como um crucificado à sua cruz". Portanto almeja criar um sistema de conhecimento fundamentado no erotismo para buscar, a partir da razão, tocar o mistério daquele "ponto de ligação" que propicia o extraordinário conhecimento de uma outra individualidade, inteiramente estranha à própria. O mistério do amor erótico se desvela justamente em sua fusão com o mistério da morte, único fenômeno que suporta plenamente uma analogia com o enlace amoroso: ambos implicam no desnudamento total; na humildade para além daquela imposta pela derrota e assumida pelo ardor da súplica e da prece.
Adriano se maravilha diante da constante renovação das promessas amorosas, da vulnerabilidade das confissões, das tolas mentiras e comprometimentos em laços sólidos e prontamente rompidos. O rompimento lhe causa estranheza em contraste com a profundidade do encontro erótico, já que não se sente capaz de passar de um objeto a outro com indiferença e não aceita que seja possível se chegar à saciedade em relação a um ser que tenha sido objeto do apaixonado desejo de acompanhar-lhe as transformações e o envelhecimento. Rejeita a diversificação de conquistas como antinômica ao afeto decorrente da crescente proximidade entre os envolvidos na relação erótica.
De fato, mesmo quando se compara o amor erótico com os apelos sensuais e prazeres da dança, encontra-se semelhanças sim, porém não é admissível concluir pela equivalência. Ainda que bailar não possa ser tido como um prazer concreto tal qual o de comer e beber, ainda que a ondulação dos corpos tangidos pela música seja sutil e virtualmente inebriante aos bailarinos - que apenas se desmancham em sorrisos e nada mais -, não alcança a profundidade visceral do jogo erótico: não verte lágrimas nem derrama sangue ou sêmen. O delírio erótico percorre um amplo gradiente que vai desde as demonstrações de acolhimento, ternura e intimidade até as de espantosos gritos, agonia e dor. Na amplidão dessas variações emocionais, a fusão dos corpos atinge uma complexidade cósmica semelhante apenas à adoração mística e à morte.
Hoje, os herdeiros dos cínicos, mais que dos moralistas - que evoluíram para admitir o tremendo poder e até, nos ambientes religiosos, a natureza sacramental da sexualidade - pretendem terapeutizar, higienizar e cercear a avalanche aquática de Escorpião a partir da estigmatização negativa das emoções despertadas por Eros, especialmente o "ciúme". Este vem sendo patologizado, tornou-se motivo de vergonha... Essas discriminações das emoções despertadas pelo exercício da sexualidade entre grosseiras e sublimes, implicam em uma certa esquizofrenia que, num momento, exalta o amor erótico aos patamares angelicais e cósmicos; em outro momento, insiste em desmembrá-lo de suas contingências reputadas como grosseiras para adequá-lo a padrões de boa conduta social ou estéticos. Essas operações almejam conter o fluxo de um rio com uma barragem que, cedo ou tarde, será rompida pela avalanche da complexidade do código de sinais manifestados na fusão erótica com o Outro, onde a emoção brota e estremece num crescendo de preferências até o paroxismo da escolha pela exclusividade. Nas palavras que a escritora verteu dos lábios de Adriano: "Com a maior parte das pessoas, os mais ligeiros ou mais superficiais desses contatos bastam a nosso desejo, ou até o excedem. Que esses mesmos contactos insistam e se multipliquem em torno de uma criatura única até bloqueá-la toda inteira; que cada detalhe de um corpo apresente para nós tantas significações perturbadoras como os traços de um rosto; que um único ser, em vez de inspirar-nos quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma melodia ou nos atormente como um problema; que esse ser passe da periferia do nosso universo ao seu centro, que se torne mais indispensável do que nós próprios, e estará realizado o admirável prodígio: assistiremos então à invasão da carne pelo espírito, e não mais um passatempo do corpo."
A fidelidade escorpianina e a exigência de reciprocidade e
comprometimento não se reduz a um simples objeto de contenção
terapêutica por faltar-lhe dignidade e equilíbrio, como se fosse algum egocentrismo doentio derivado de infatilismo auto-gratificante. Melhor seria que os astrólogos assumissem maior responsabilidade - caso fosse possível - e superassem Trimalquio. A releitura da simbologia irradiada pelo signo de Escorpião, sob a luz das reflexões de Adriano por Yourcenar, nos conduz a tocar o mistério de Escorpião e vislumbrar sua complexidade indomável, que diz respeito à preservação do mistério do amor erótico - como via de invasão "da carne pelo espírito" -, para defendê-lo da profanação. Ladeado por Eros e Thanatos, Escorpião reivindica a dignidade transcendente da corporalidade e lembra que a profusão do derramamento de seus fluídos, virtualmente mortal, deve ser recebida com gratidão e reverência. Afinal, se o amor não é negócio, os corpos em que se realiza não são tampouco descartáveis ou condenáveis ao silêncio, ao esquecimento e indiferença de um amante vazio de reverência à doação do Outro.
Referências bibliográficas:
Petrônio. Satíricon. Tradução de Alex Marius. São Paulo – SP: Martin
Claret, 2003.
Yourcenar, M. Memórias de Adriano. Tradução de Martha Calderaro. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.