As dimensões concreta e simbólica
Tudo o que somos e fazemos neste mundo possui no mínimo duas dimensões distintas, porém indissociáveis: uma dimensão concreta e uma dimensão simbólica. Isto é, tudo o que somos e fazemos reverbera e reflete no mundo tanto em um sentido mais prático e instantâneo, como também em um sentido mais simbólico, próprio do âmbito dos significados – campo este muito mais sutil e difícil de apreender em sua totalidade.
No sentido concreto, todos nós somos seres altamente limitados, seja pelo próprio corpo, seja pela própria personalidade, ambos que muitas vezes nos impossibilitam de agir de alguma maneira desejada, seja ainda pelo contexto histórico e social, que nos oferece apenas alguns determinados meios específicos de ação, alguns caminhos mais ou menos traçados para percorrer, uma ou outra lacuna a partir de onde podemos intervir e transformar a realidade. Dessa maneira, muitas vezes nos vemos impossibilitados e impotentes diante deste mundo, que apesar de “tornar-se cada dia menor”, devido aos inúmeros meios de comunicação e transporte, cada vez mais avançados e evoluídos; converte-se também em algo cada vez mais “complexo e de difícil apreensão”, onde facilmente podemos nos perder diante de tantas informações, provenientes do mundo inteiro em tempo real, fato este que, obviamente, nosso corpo e nossa personalidade não permitem que sejam vistos e elaborados em sua totalidade.
No entanto, se pela sua faceta concreta, o ser humano caracteriza-se como ser limitado, independente de seu maior ou menor desejo pelo infinito, independente de seu maior ou menor interesse por cada um dos seres viventes; pela sua faceta simbólica, o ser humano se torna um ser ilimitado, uma espécie de ícone, encarnação viva de sentidos, sonhos e ideais, transcendente ao tempo e ao espaço vividos. Podendo servir de amparo, conforto e inspiração para qualquer um que venha a conhecer sua história e o que tal pessoa significou em sua época e em seu meio social – e que talvez continue significando, de acordo com a cultura em questão ou de acordo com a própria pessoa que vem a conhecer sua história, capaz de interpretar tal figura da melhor maneira que lhe aprouver. É neste sentido que não importa tanto para nós se, por exemplo, Jesus Cristo conversou com trinta, trezentas ou três mil pessoas (apesar de para tais pessoas provavelmente ter importado); o que mais importa para nós é tudo aquilo que sua vida significou, tudo o que ele representou em sua época, os novos valores que ele trouxe e que estiveram encarnados em sua pessoa, em seus atos e em suas palavras.
Nenhum de nós pode conhecer com toda certeza quem e como foi o Jesus concreto, mas podemos conhecê-lo em sua faceta simbólica – o que, por si só, já se constitui como de essencial e profunda importância espiritual e psíquica para nós que aqui vivemos. Pois sua figura serve de exemplo, reflexão, meditação, identificação, compreensão de mundo e de realidade, de homem e de vida, etc. Tudo isso e muito mais se encontra constelado na imagem e figura de Jesus Cristo, assim como de quaisquer outros, vivos ou não (do ponto de vista concreto), que estão por aí, agindo e vivendo para um determinado e específico meio, mas expandindo-se simbolicamente para todo o mundo e todos os seres que porventura o puderem conhecê-lo em sua história e vida.
Conseqüentemente, nossa responsabilidade enquanto seres humanos não se limita apenas à dimensão concreta, mas também à simbólica. Pois se a primeira possui efeitos mais imediatos e aparentemente de simples apreensão, a segunda transcende os limites físicos para transitar simbolicamente por meio e através da história, da cultura, da fala, do tempo e do espaço. É por tais razões que um personagem literário pode alterar drasticamente a vida de muitas pessoas, porque ele existe simbolicamente de um modo tão real quanto qualquer outra pessoa, viva ou não. Ele, em seu potencial simbólico, cria e institui na sociedade e no mundo sua realidade e concretude, tornando possíveis discussões e reflexões concretas, por parte de pessoas vivas, de aspectos filosóficos, éticos, morais, sociais, etc. Após a criação de Werther, por exemplo, personagem de Goethe de “Os sofrimentos do Jovem Werther”, várias e várias pessoas, profundamente identificadas com tal personagem e sua história, passaram a se vestir como ele, a falar como ele – muitas até tendo o mesmo fim dele!
A relação entre tais dimensões é de inestimável relevância para nossa vida de seres humanos, seres eminentemente simbólicos, relacionais e concretos ao mesmo tempo, seres que estão localizados a todo instante entre o eterno e o profano, ora mais para lá, ora mais para cá, procurando e almejando a todo momento uma maior ou menor síntese entre todos esses diversos aspectos. Permanecer apenas na faceta concreta, ou reconhecer uma preponderância de valor desta instância, pode facilmente nos conduzir a um pessimismo existencial sem limites, já que nos veremos em um mundo descomunal, repleto de problemas de toda espécie, e, em oposição, capazes de apenas algumas poucas ações e atitudes, de acordo com nossa disponibilidade, capacidade, criatividade e vontade. Permanecer preponderantemente na faceta simbólica é algo extremamente perigoso também, pois assim corre-se o risco de simbolizar o mundo inteiro em sua própria alma, arranjar-se entre símbolos e simplesmente esquecer que há um mundo concreto aí fora, ocupado por pessoas concretas, lidando e vivendo entre relações concretas, tomadas por sentimentos e sofrimento concreto. Algo parecido com Nietzsche, que certa vez disse que a única coisa que existia era a Vontade de Potência, sendo a humanidade e tudo o que ela “exige” de nós uma mera abstração.
Assim sendo, todos nós que vivemos no mundo podemos influir sobre outros tanto de um ponto de vista concreto como simbólico, sendo que na verdade ambos confluem juntos na ação prática, seja ela uma doação de alimentos, uma conversa em uma praça ou ainda um texto escrito. Toda ação possui estas duas facetas, sendo que a concreta transcende-se pelo simbólico, e o simbólico constitui-se pelo concreto, existindo amalgamados no interior e exterior de cada ato. É extremamente difícil conceber o alcance real de uma única ação específica, já que ela atravessa os mundos simbólico e espiritual humanos. Um pai que maltrata seus filhos está fazendo muito mais mal, do ponto de vista simbólico, do que pode imaginar, não apenas para seus filhos (o que é evidente), mas também para aqueles que o rodeiam e sentem em si mesmos a ação deste homem. O nazismo, neste sentido, não fez mal apenas aos judeus; e os Estados Unidos não destruíram apenas Hiroshima e Nagasaki; eles agiram sobre uma série de símbolos, representações de mundo, concepções de vida, esperanças e desesperanças que habitam o coração de cada ser humano vivente, que pensou, refletiu, sentiu e se emocionou a respeito destes acontecimentos – o que reverbera em todos os campos possíveis e imagináveis da ação e existência humanas. Os responsáveis pela bomba atômica não mataram apenas pessoas – abalaram idéias e ideais, constelaram filosofias e concepções de mundo, de ser humano e de suas relações tecnológicas, éticas e sociais com a natureza e com outras sociedades e mesmo com o mundo inteiro. As bombas atômicas, assim como o nazismo, assim como o capitalismo vigente, fazem estremecer todas as almas humanas, moldando pensamentos, opiniões, sentimentos, isto é, pessoas concretas – que encarnam tudo isso em meio ao jogo de relações humanas que constitui a realidade social.
Entretanto, o outro lado também é válido: uma vida digna e uma ação valorosa são muito mais do que uma simples vida ou uma mera ação – é a própria defesa e sustentação, por meio de um ato portador de sentido, da Vida, com tudo aquilo que estiver vinculado a tal idéia, em todas as dimensões e facetas que tal palavra possa comportar na realidade vivida. O mundo simbólico, o mundo dos sentidos, se configura como algo tão, mas tão importante, que não é à toa que quando alguém se vê com sua cultura completamente devastada – por uma ação exterior – ou desgastada – pela própria ação do tempo e do fluxo da cultura -, as possibilidades de adoecer se tornam cada vez mais preponderantes. Como acontece, por exemplo, com algumas populações indígenas, cuja cultura e valores foram profundamente distorcidos e violentados, o que acabou resultando em sua população uma maior taxa de violência, apatia, falta de sentido, desconcerto existencial, alcoolismo, suicídio, etc. – visto que tiveram sua terra simbólica, tanto quanto sua terra natal, invadida e dominada, em função de outros inúmeros fins. Vê-se aqui, clara e amargamente, que o símbolo encarnado pode tanto salvar vidas, como invalidar, calar, extingüir ou até matar outras.
Para fins práticos, em nossa sociedade, uma pessoa que toma como ação principal de sua vida pensar a respeito do ser humano não está em oposição a uma pessoa que toma como ação principal algo aparentemente mais concreto (na visão de alguns), como construir e cuidar de um orfanato, já que ambas as ações estão simbolicamente irmanadas. E, talvez, de um modo simplificado, nem há por que tais pessoas ficarem discutindo quem faz mais pelo ser humano, já que ambos estão lidando com aspectos relevantes e essenciais. “Nem só de pão vive o homem” – eis uma frase muito sábia. Mas qual seria a mais importante – alguns poderiam me perguntar? Ora, as duas! Afinal, se alguns poderiam dizer que sem o pão, sem o alimento, sequer seria possível para a pessoa “se dar ao luxo” de ficar pensando e abstraindo; da mesma forma, a falta deste último também pode vir a impedir que haja pão e alimento na mesa de uma parcela considerável da população. E mais, mesmo um simples pedaço de pão não deixa de se constituir como um símbolo, repleto de significados e sentidos para a pessoa que o come – assim como a falta dele também; e um texto mais teórico não deixa de se constituir como algo tão concreto como um pão, capaz de alimentar pessoas espiritualmente famintas de idéias e concepções mais libertárias e humanas, criando novas possibilidades para o desenvolvimento de novas ações e modos de vivência; ou, por outro lado, criando e fundamentando situações capazes de excluir, exilar, adoecer e mesmo matar pessoas concretas, como se vê em diversos momentos da história, seja em uma filosofia nazista ou em uma dada concepção econômica, política e ideológica...
Para bom entendedor, meia palavra basta, concreta e simbolicamente – ou melhor dizendo: humanamente.
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