Não Existe Música

Não Existe Música

Existem musicistas, ou músicos. A música está no ar, nas esferas, é um elemento moldável, sendo a tarefa proposta moldá-la a seu jeito.

Na porta do Teatro Municipal, há 25 anos atrás, e graças a um projeto de incentivo à cultura, era possível assistir, o que hoje se diz “pocket show” , um grande artista por preço irrisório. Tratava-se de um sujeito chamado Celso Machado. Nunca tinha ouvido falar, e nunca mais esqueci. Quem estava ao meu lado, atrás ou na frente, deu pra perceber e dá pra intuir: está boquiaberto até hoje. Inclusive eu. Que na hora, de cara, pensei uma coisa: tem algo errado. Isso porque, ali, ao vivo e em cores, a imagem captada era a de um violonista tocando um violão. Mas o que se ouvia eram 10 violões. A última foi uma versão de Asa Branca, conduzida literalmente para embasbacar, e concluir: ninguém pode tocar assim. Digo, um ser humano. Um extraterrestre talvez, grande é o cosmo, misteriosos são seus recheios...Mas o Celso Machado tocou assim, o que simplesmente leva à outra conclusão: O Celso Machado pode. Hoje ele é bam-bam-bam numa universidade lá na Alemanha.

E prossigamos, pois esse artigo busca trazer à baila a capacidade de cada um que se lançou nessa aventura, de traduzir a Deusa Música à seu jeito. Quando isso acontece, e graças ao Altíssimo isso acontece muito mais do que se supõe, o universo se enriquece. Marcas registradas imprimem nos nossos corações indeléveis pegadas.

Diane Schurr. Essa mulher ao piano, e saibam, está há léguas de ser um “piano ao cair da tarde”, é quase Peterson, Oscar – e não por nada não, mas assim como no futebol tem o Pelé, por aqui temos o Peterson. Dianne Schurr, exímia, sendo que a questão não é ser exímio, mas sim o que o dono do exímio faz com o exímio dele. Ela bota pra quebrar, e tem um cantar “comigo ninguém pode”, que.., calma, já já chegamos lá, então, Dianne Schurr consegue uma aliança perfeita com os ingredientes “bota pra quebrar + comigo ninguém pode” que se transformam numa marca registrada, incomparável, por sinal, como todas. Deus me concedeu o privilégio de assisti-la no Bourbon Street, no final de 99, assim como também tive o privilégio de conviver com o CD, “Music is My Life”, onde, na contracapa, consta a seguinte declaração, mais ou menos assim: “Se eu pudesse, te daria os meus olhos, para que você enxergasse a beleza do mundo”. Frank Sinatra. Porque Madame Schurr é cega. (Frank deve ter dito isso pouco antes de se mudar para Andrômeda, que é para onde vão os músicos e os poetas).

Elis? A Regina? Complicado falar de Deusas.

1. Assim me disse um sábio: ela não foi apenas uma cantora, ela foi uma missionária. Ela veio para cantar o Brasil.

2. Na histórica entrevista do programa Ensaio, TV Cultura, feita em 1972, o que fascina ali não é apenas vê-la/ouvindo-a cantando, mas quando ela fala, vem dela a inequívoca autoridade, não no sentido da arrogância, mas autoridade que segundo ouvi dizer, você tem no plano espiritual e projeta aqui, no mundo da matéria, onde o tom da sua voz, o seu olhar, a maneira como dizes seja o que for não deixa sofismas sobre o que és.

2A. Não me parece que ela "apenas" cantava, mas que vivia intensamente e por conseguinte transmitia o papel proposto na canção. “Quando olhaste bem, nos olhos meus...”.

E o artigo continua. Porque de semi-deuses podemos falar, eles tocam um instrumento e atingem essa patente quando, pelo toque, você já sabe quem é. E isso não é para qualquer um. Isso requer além do talento, um esforço sacerdotal.

“Eu queria ter soado como um Martini seco”, Paul Desmond, palavras dele, e vai tocar saxofone com essa classe assim no quinto dos invernos.

Não, não, perda de tempo dizer que aqui temos Paulo Moura e o Roberto Sion, por exemplo. Porque, patriotada ou não, está na minha memória e eu grafito embaixo, a abertura do festival de Montreux, acho que 1977, onde o apresentador diz: E agora o Brasil, que além de ser o primeiro no futebol, é também o primeiro na música. Daí entra o Wagner Tiso tocando...

Mas esse não é o assunto aqui. Brasil é o paraíso dos gênios musicais desde os tempos da Madame Gonzaga, só quem não vê isso são os próprios brasileiros e nessa controvérsia não vou entrar. Voltando pro Desmond, tem um disco dele com a sinfônica de Londres, mais um guitarrista chamado Jim Hall. Infelizmente não me lembro do nome da música, mas o solo de guitarra do sr. Hall para mim, entrou para a história nessa música. Porque aí se torna uma referência, e uma referência significa um novo universo.

Que é também sobre isso que esse artigo tenta falar.

No filme "Vinicius", tem uma fala do Edu Lobo (grande universo), expressando que, quando todo mundo achou que a bossa nova, que já era uma revolução, (com João), tinha, por assim dizer, assentado, aparece um cidadão trazendo um baita universo: Baden Powell.

Percebes?

O que, os clássicos? Ah, os clássicos, bom, quando um sujeito sozinho escreve aquele monte de coisa, melodias, ostinatos, células rítmicas e melódicas, percussão, todas as dinâmicas, um único gajo escreve tudo aquilo, e tudo aquilo funciona ferpeitamente e..., que mais a dizer, nessa vertente? Nada a não ser render graças ao sr. Guido D'Arezzo, que em meados do séc. XI “inventou” a notação musical, que por sua vez tanto permitiu que Verdi compusesse sua alquimia inigualável de vozes quanto o Antonio Carlos, também graças ao Guido, escrevesse ali no pentagrama: dó, ré, mi, fá, mi, ré, ré bemol, ré, fá, ré bemol, que, com a letra junto, fica assim: “Se você disser, que eu desafino amor ....”.

Assim, do clássico ao não clássico, desde o ano 1.000 três pontinhos música passa a ter dono, porque afinal poucos seriam capazes de fazer o que este cara fez. Vejam. Sete séculos após a época do sr. D'Arezzo havia um papa, que, uma única vez ao ano, mandava o seu coral recitar determinada peça, que a Igreja achava que mais vezes não podia porque exacerbaria o espírito, um coral de sei lá quantas vozes, e ai de quem desobedecesse tal mandamento, até o dia em que um dos meninos deu no pé, foi pra Veneza e escreveu tudo aquilo de cabeça, porque ele havia decorado: Wolfang Amadeus Mozart. Foi excomungado e muito espírito passou a se exacerbar porque afinal o som não estava mais trancafiado, estava no mundo, e para o mundo.

Da música à música, que se plasma nos músicos ou que os músicos plasmam. Como queiram. Hora e vez da guitarra, um instrumento que deu muito o que falar, que já queimaram e quebraram nos palcos da vida, mas que teve um (vários, mas esse é especial) que a tratou com o devido respeito. Sras. e srs., mister Joe Pass. E o papo dele rima com o nome – jazz. E o cara bagunça tudo, virtuoso mesmo sem equívoco, e se a magistral canção diz um cantinho e um violão, a canção dele era uma guitarra e o mundo. Se apresentou sozinho várias vezes, nos 4 cantos do planeta, só em Montreux foram 2 ou mais, mas eis o caso: ele é uma referência. E, numa das vezes em que na nossa pátria esteve, deparou-se com outra referência, sua eminência Hélio Delmiro. Dizem aqueles que tudo sabem que sr. Pass, diante do colosso Delmiro, pensou “amém”. Ambos descortinaram maneiras de “fazer a coisa”, e tem muito fritador de escala que está até hoje tentando imitar. Mister Joe Pass, em Montreux, trouxe à baila outro mago maior, ao tocar "You Are The Sunshine Of My Life". Que aqui deve constar: Stevie Wonder. Puxa aí no YouTube, mermão, WEB 2.0 é pra isso mesmo, você vai ver ele magrinho, com a gaitinha, se é do seu tempo, vai negar que já não cantarolou também as músicas do rapaz? Que apesar de não serem samba dava vontade de assoviar e dançar. E o Stevie e o Gil se encontraram, porque o que a lei da atração funciona pra músico não é brincadeira. Só não atrai dinheiro, mas também, quando atrai...E o Gil, assim como o irmão branco dele, o Cae, mais o paulistano mais carioca que já se viu, Francisco de Holanda, mais o branco mais preto do Brasil, o diplomata de Moraes, mais a turma toda, que é imensa, expressões individuais que atestam a teoria destas mal traçadas, e...bom, quem é da minha faixa etária também atesta: crescemos junto com eles. E nosso crescimento teria sido infinitamente mais pobre não fossem eles. Simplesmente também porque eles acreditaram no taco deles. Foi questão de fé. Não só os do parágrafo acima como de todos os palcos, acreditaram que aquela maneira de tocarem ou cantarem ou ambos era o certo, porque era como eles sabiam fazer, era assim que eles iam retirando do invisível a música, que também não é visível embora às vezes eu ache que é.

Aliás, considerada a primeira das artes, justamente por ser imaterial, não vivemos sem ela. E talvez ela também dependa da gente, vai saber, questão essa que no mínimo já invalida o título do artigo, mas não a continuação do mesmo.

Reparem, ouvintes de todos os credos, de onde vem os fluxos que a persistência humana transpõe barreiras e transforma em alegria para os nossos dias sombrios. Ou pros nossos brios. Vem de toda parte, do infinito local ao infinito universal. E no local planeta azul, vide Ray Charles: comeu o pão pra lá de amassado até, entre outras, arrancar do seu coração “Georgia on My Mind". E se hoje a canção tornou-se hino do estado de mesmo nome, ontem Ray estava proibido de por lá pisotear em virtude do racismo.

Duke Ellington contou à Rainha Elizabeth, que quando fez a travessia do pobre sul ao rico norte americano, via seus irmãos de cor enforcados nos galhos das árvores. E o Duke nos trouxe “In a sentimental mood”, que se você não dançou agarradinho junto dela, ainda há tempo, “mermão”, porque nossos guerreiros não vivem sem canção, muito menos sem carinho. Senão, como é que vai segurar esse rojão? E os dois acima são frutos do sofrimento inominável também oriundo das plantações de algodão, que entre um vestígio e outro de sossego veio o Blues, com uma lista de nomes que dá a volta na galáxia, sendo que lá no principio aquele jeito de tocar, pouca nota, ritmo tinhoso, o velho Blues teve dois filhos, roqueiro que é roqueiro sabe quem é seu pai, jazzista idem, ele estava lá, numa choupana perto do algodoal, com um pinho de 6 cordas dizendo aqui não só nasce o Blues como nesse bordão nasce o“riff”, que a galera pop dos anos 70 fazia com maestria. Todavia, lá do algodoal, com uma voz profunda e o acento da “blue note” tudo exprimia lamento, e "Lamento", num estalar de dedos singrou as Américas de norte à sul, onde, num morro do Rio de Janeiro “Seu Alfredo” compôs e Vinicius fez a letra, salvo engano, porque o plasma musical trafega no éter com a mesma facilidade que você vai na banca de jornal. E ele só procura, e sempre acha, quem lhe dê voz e expressão, sem fazer distinção, porque essa força do Incriado não conhece tempo nem espaço. Por isso que por aqui além de românticos podemos ser quânticos, e constatar a imbatível elegância do Ataulfo Alves, na Record, em 67, acompanhado pelo Maestro Caçulinha, numa voz de derreter qualquer vivente, entretanto, veja bem, 1967, o plasma musical vem em ondas como o mar, já estavam acontecendo novos gêneros musicais, atropelando toda a praia dos Ataulfos Magistrais (Vicente Celestino, Orlando Silva e grande elenco), porque um novo elenco subia no palco com vigor de locomotiva, não há meio de resistir, por aqui a gente sabe quem são, e por lá também, tudo a mesma tribo, vozes de outros mundos, e se no país tropical várias Teresas requebraram sobre Folhas Secas vendo A Banda Passar, pra começar, numa ilha no canal da Mancha 4 moleques te tiravam da cadeira pra dançar "Can‘t Buy Me Love".

Não, não, mermão, música é universal e cuspir no prato que comeu não é legal. Quem foi que deu vez pro Sergio Mendes e pro Eumir Deodato? E para o gênio chamado Victor Assis Brasil? E para tantos nomes que aqui não cabem? Pois não estava o Antonio Carlos, num boteco em Ipanema, quando toca o telefone, era o gringo da Gema, Sinatra, perguntando: quer cantar comigo? Los gringos, hombre... te aquieta e escuta, e olha esse sujeito branquelo, não é musico, é um avatar musical, Hermeto Pascoal. E o telefone também tocou pra ele, porém lá em Nova Iorque, porque ele já estava lá gravando um disco que delicadamente esfregava na cara dos nativos: isso que vocês tocam? Tiro de letra...Mas o telefone tocou realmente, ele atende, tudo em inglês (língua nativa), e ele diz: alô? Do outro lado da linha um vozeirão (também em inglês) indaga: por favor, o sr. Hermeto Pascoal, ao que o avatar responde, sim, o próprio, quem quer falar? O vozeirão responde: Miles Davis. Hermeto desligou sem delongas, mandando a voz catar sardinhas. Dois minutos depois, de novo o telefone, e desta feita Hermeto manda a voz, a mãe e a tia para a casa do escambal. Reza a lenda que o Sino de Ouro tiniu no íntimo do Albino, e quando telefone tocou pela terceira vez sua atitude mudou, e a da voz também: moro no endereço tal, o que acha de conversarmos? Que o pariu, é o final da interjeição que às vezes se usa, ao ouvir o resultado desse encontro. Dizem que quando os aspirantes perguntavam ao H. Pascoal que fazer, ele respondia: arpeje, meu filho, arpeje. E já que quânticos estamos, migremos para o Canadá, berço de um fulano chamado Oscar. Porque falamos dele? Porque estamos falando do Pelé, que num universo paralelo trocou a bola pelas teclas, pois quânticos continuamos. Estudante de piano clássico no Canadá, década de 40, quando a mãe não via Mister Peterson juntava a galera e tocavam um lance muito louco chamando jazz. Belo dia, no começo dos 50, Peterson e amigos vão se apresentar num boteco em Toronto. E o Plano do Espírito dá um jeito para que uma rádio local transmita o show ao vivo. E nesse mesmo instante, o maior caça talentos de NY está num táxi, a caminho do aeroporto. Pero, lo taxista sintoniza na tal rádio, e o tal caçador de talentos ouve: “estamos aqui, no boteco xis, ouvindo o pianista Oscar Peterson...”. E o passageiro ordena ao motorista: Esquece o aeroporto e toca pra esse boteco. Um mês depois Oscar se apresenta no Madison Square Garden. Ele estava preparado. Assim como o maestro Antonio Carlos estava preparado para apresentar ao vivo, para 20 milhões de telespectadores, com Sinatra ao lado, “A” Garota de Ipanema. Porque estar preparado faz parte do show. De qualquer um em qualquer instância. E o maior bruxo musical, já visto por qualquer um no mapa astral, chama-se Egberto, cuja pauta e a flauta entraram mata à dentro com o propósito de encontrar uma tribo peculiar, cuja crença milenar era cantar em prosa autêntica que o universo nasceu de uma música. Senhor Gismonti já o sabia, queria apenas confirmar, o que a propósito Dom César Camargo sempre soube, pois em português, em inglês ou eslovaco, a trama da Deusa Música também toca cavaco, e beijou o "Prato Feito" do Toninho Horta e o singular louvor do sr. Guedes, abençoou todos os cancioneiros, "chorões" e seresteiros, se espalha em todas as gentes e seus continentes, e de cada um sai uma vertente, às vezes não é mulata e faceira, mas decerto é feiticeira. E pensando bem, acho que existe.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 22/04/2008
Reeditado em 13/04/2020
Código do texto: T957269
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