Mia Couto, um autor de outra literatura em língua portuguesa
Terezinha Pereira
É comum, para nós brasileiros, imaginar que o português é a língua falada no Brasil e em Portugal. Apenas. Desde que entramos na escola, sabemos que em Portugal nasceu Camões, que de tão grande escritor, a ele é atribuída a paternidade da língua literária portuguesa – “língua de Camões”.
Como a África é um continente esquecido ou referido apenas pelas suas dores, nem nos é dado imaginar que lá, alguns países também foram colonizados por Portugal e têm o português como língua oficial: Moçambique, Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Se pela distância ou mesmo pela diversidade cultural, nem levamos em conta que, na Ásia, igualmente existem nações em que usam a língua portuguesa oficialmente: Timor-Leste, Goa e Macau, esse um pequeno território que fica na costa sul da China.
Quando dizemos língua pensamos na fala e na escrita. E quando falamos em escrita, pensamos nos diversos tipos de textos que podem ser escritos, dentre eles os textos literários. Se comecei falando de Camões, acabei por lembrar Eça de Queirós, Gil Vicente, Florbela Espanca, Camilo Castelo Branco, todos esses autores portugueses de muitos anos atrás. Hoje sei, e muitos sabem de autores portugueses contemporâneos, como Lídia Jorge, Maria Gabriela Llansol, Saramago, esse o mais conhecido, pois como grande, foi reconhecido pelo Prêmio Nobel.
Nesse artigo, vou deixar de falar dos autores de ontem e de hoje de nossa língua brasileira. Muito haveria de falar. A literatura escrita no Brasil acontece desde o século XVI, quando o país era colônia de Portugal. Portanto, a literatura brasileira já criou raízes e vínculos com nossa cultura e muitos são os nomes que poderiam ser lembrados. O que muitos não atinam é que, além de no Brasil e Portugal, nos outros países de língua portuguesa, existe uma literatura. Literatura de boa qualidade.
Gostaria de falar de Mia Couto, um autor nascido em Moçambique, na África, em 1955. Moçambique deixou de ser colônia de Portugal em 1975 e por esse motivo, Mia Couto, nascido, criado e tendo feito seus estudos em Moçambique, se diz mais velho que o próprio país. Não é ele o primeiro autor africano em língua portuguesa e nem o único, pois em Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe fazem literatura há algumas dezenas de anos. Dentre os autores africanos, o escritor Mia Couto tem se destacado, escrevendo contos, romances, poemas e artigos jornalísticos, usando as palavras de uma forma muito original para expressar as vozes dos povos africanos, vozes essas caladas há séculos, pela lei do colonizador. Seus livros têm despertado o interesse de críticos literários de diversos lugares do mundo e, melhor do que isso, tem agradado ao público leitor, que aprecia romances e contos em que haja construções lingüísticas inovadoras, neologismos e também situações mais parecidas com o fantástico, com o realismo imaginário, com o poético.
Com a intenção de mostrar um pouco da linguagem de Mia Couto, que leu Guimarães Rosa e que, a partir daí, soube que lhe era permitido fazer uso da sonoridade da própria língua falada para construir um belo texto escrito , transcrevo uma passagem do seu belo romance “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, na qual é narrada a morte do Avô Dito Mariano. Avô Mariano é o personagem deste romance, ao redor do qual, é tecida toda a trama da história:
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“Por fim, alguém me dizia como falecera o Avô. Acontecera do seguinte modo: a família se reunira para posar para uma fotografia. Alinharam todos no quintal, o Avô era o único sentado, bem no meio de todos. O velho Mariano, alegre, ditava ordens, distribuía uns e outros pelos devidos lugares, corrigia sorrisos, arrumava alturas e idades. Dispararam-se as máquinas, deflagraram os flashes. Depois, todos risonhos, se recompuseram e se dispersaram. Todos, menos o velho Mariano. Ele ficara, sentado. Sorrindo. Chamaram-no. Nada. Ele permanecia como que congelado, o mesmo sorriso no rosto fixo. Quando o foram buscar notaram que não respirava. O seu coração se suspendera em definitivo retrato.”
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Para alguém que gosta mesmo de ler, que vai ficar curioso para conhecer toda a história de “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, deixo algumas falas atribuídas ao avô Dito Mariano, que é dado como morto desde o início da narrativa, mas parece um vivo durante toda a trama:
“ O importante não é a casa onde moramos.
Mas onde, em nós, a casa mora.”
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“Se eu não creio em Deus?
Lá crer, creio.
Mas acreditar, eu acredito é no Diabo.”
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“Cada um descobre o seu anjo
Tendo um caso com o demônio.”
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“ O mundo
já não era um lugar de viver.
Agora, já nem de morrer é.”
E, para terminar, seguem dois provérbios africanos, que ajudam na construção da história:
“Foi na água mais calma que o homem se afogou.”
“A lua anda devagar mas atravessa o mundo.”
Biografia de Mia Couto
Mia Couto nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi director da Agência de Informação de Moçambique, da revista Tempo e do jornal Notícias de Maputo.
Em 1983 publica o seu primeiro livro: Raiz de Orvalho (poemas); depois um livro de contos, Vozes Anoitecidas, premiado pela Associação dos Escritores Moçambicanos, publicado pela Caminho em 1986. Em 1990 a Caminho publica o seu livro de estórias Cada Homem É Uma Raça e em 1991 Cronicando, também inicialmente publicado em Moçambique. Em 1982 sai o seu primeiro romance: Terra Sonâmbula. Em 1994 sai Estórias Abensonhadas, e em 1996 o romance A Varanda de Frangipani. Contos do Nascer da Terra, último livro do autor, saiu em Julho de 1997.
Nascido na Beira (Moçambique), em 1955, Mia Couto é considerado uma dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos que escrevem em português. Este estatuto incontestado deve-se não só à forma como descreve e trata os problemas e a vida quotidiana do Moçambique contemporâneo, mas principalmente à inventiva poética da sua escrita, numa permanente descoberta de novas palavras através de um processo de mestiçagem entre o português "culto" e as várias formas e variantes dialectais introduzidas pelas populações moçambicanas. Mia é assim uma espécie de mágico da língua, criando, apropriando, recriando, renovando a língua portuguesa em novas e inesperadas direcções. Tem, devido a essa autêntica revolução de inventiva linguística, sido muito apropriadamente comparado a um outro grande mágico da Língua Portuguesa do século XX, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa.
António Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto (uma alcunha que ele conserva desde infância), foi, desde 1974 e durante vários anos, director da Agência de Informação de Moçambique, seguidamente dirigiu o jornal Notícias de Maputo e a revista Tempo. Posteriormente, estudou Medicina e Biologia e é actualmente biólogo na reserva natural da Ilha da Inhaca, em Moçambique.
A escrita tem sido no entanto uma paixão constante, desde a poesia, com que se estreou em 1983 (A Raiz de Orvalho), até à escrita jornalística (bem presente no livro que reúne as crónicas escritas para o jornal "Notícias de Maputo", Cronicando) e à prosa de ficção. A questão do género literário não é, de resto, a mais importante para um autor em cuja escrita prosa e poesia se contaminam e que escreve "pelo prazer de desarrumar a língua".
Questões mais importantes reflectidas na sua obra são as relacionadas com a vida do povo moçambicano, um dos mais pobres e martirizados do mundo, recém-saído de 30 anos de guerra civil e onde persiste uma forte tradição de transmissão da literatura e dos saberes essencialmente por via oral. Numa cultura onde se diz que "cada velho que morre é uma biblioteca que arde", Mia empreende uma escrita que liga a tradição oral africana à tradição literária ocidental, tal como no seu trabalho de biólogo liga, no estudo da floresta, o saber ancestral dos anciãos sobre o espírito das árvores e das plantas à moderna ciência da Ecologia. Essencial, num caso como noutro, é sempre a relação mais profunda entre o humano e a terra, entre um humano e outro humano, por vezes nas suas condições mais extremas, como no seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, saudado pela crítica como um dos melhores romances em português dos últimos anos e que descreve a luta pela sobrevivência durante a guerra civil em Moçambique.
Obra:
Poesia
A Raiz de Orvalho. Maputo: Cadernos Tempo, 1983.
Crónica
Cronicando. Maputo: Notícias, 1986. Lisboa: Caminho, 1991.
Ficção
Vozes Anoitecidas.(contos) Maputo: Assoc. dos Escritores Moçambicanos, 1986. Lisboa: Caminho, 1987, 3ª ed. 1995.
Cada Homem É uma Raça.(contos). Lisboa: Caminho, 1990, 3ª ed., 1994.
Terra Sonâmbula. (romance) Lisboa: Caminho, 1992; 2ª ed. 1996.
Estórias Abensonhadas. (contos) Lisboa: Caminho, 1994.
A Varanda do Frangipani. (romance) Lisboa: Caminho, 1996.
Contos do Nascer da Terra. (contos) Lisboa: Caminho, 1997.
Mar me quer. Lisboa: Colecção 98Mares, Expo'98 , 1997.
(Fonte: geocities.yahoo.com.br/poesiaeterna/ poetas/mocambique/miacouto.htm)
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