Pablo Neruda
Leio o livro de Harold Bloom, "O Cânone Ocidental", em que ele faz a defesa da Literatura com L grande. A dita, a verdadeira, a legitimada. Bloom põe, muito justamente, Shakespeare como o expoente máximo do cánone ocidental. Bloom tem horror à literaturazinha popular e, pior, popularucha, e aos escrevinhadores. Faz Bloom muito bem. Fazem falta mais "Blooms", porque os críticos de literatura começam a sucumbir à paraliteratura. Não tarda até gostam. Não tarda e até só passam a gostar de literatura fácil, de apelo aos sentidos. Olha Leslie Fiedler, por exemplo, que já se rendeu. Mas temos que lhe perdoar, ele é tão highbrow a fazer a defesa do lowbrow! É tão cómico ver um elitista nato, um homem cultíssimo, como Fiedler, a defender a literatura pop. Problema mesmo é que cada vez mais os próprios críticos têm muito pouco de cultos e defendem o pop, porque não têm capacidade para ler mais que isso.
Pois eu estou com Bloom e Steiner! E como não concordar com as escolhas feitas por Bloom como identificadoras dos verdadeiros escritores, quando nos deparamos com um poema de Pablo Neruda, escolhido por ele para exemplificar a verdadeira poesia?
«Por isso a segunda-feira arde como petróleo
quando me vê chegar com cara de prisão,
e uiva no seu decurso qual uma roda ferida,
e dá passos de sangue ardendo rumo à noite.
E empurra-me para certos recantos, para certas casas húmidas,
para hospitais onde ossos saem pela janela,
para certas sapatarias com odor a vinagre,
para ruas espantosas como fendas.
Há pássaros cor de enxofre e horríveis intestinos
pendurados nas portas das casas que odeio,
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deveriam ter chorado de vergonha e espanto,
há guarda-chuvas em toda a parte, e venenos, e umbigos.
Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.»
É possível gostar desta poesia e de "poesia" que é o seu oposto directo? Tudo é possível, até o paradoxo. Mas é pena!
BLOOM, Harold, "O Cânone Ocidental", Lisboa, Temas e Debates, 1997, pp. 441, 442