Limitações da Hermenêutica Positivista e as Propostas por uma Teoria Legitimatória para as Decisões Judiciais em Contextos Eticamente Pulverizados.
1. O Direito Como Meta-Sistema Social:
O direito surge a partir da necessidade de regulamentação das condutas humanas, há quem diga que não há e nunca houve sociedade sem direito, se houve ou não, não nos interessa. O que nos cabe, é saber que a necessidade de organizar grupos humanos cada vez mais complexos fez com que se criassem regras, essas que por sua vez eram difusas, carregadas de preceitos morais, éticos e religiosos, que só mais tarde com o surgimento da escrita seriam codificadas, aumentando sua eficiência para os povos da época.
Com o surgimento da escrita as leis passaram a ser conhecidas por todos, surge nesse momento à necessidade de organização desse meta-sistema regulador - o código de Justiniano foi a primeira compilação de leis e entendimentos dos grandes jurisconsultos romanos – a partir desse momento o direito toma a estrutura que nós conhecemos.
Esse emaranhado de leis começa a ficar confuso, surge a necessidade de criar meta-regras, que unifiquem o sistema jurídico dando a ele um corpo único, surge a hermenêutica jurídica, e a partir desse momento a pretensão de perfeição formal do direito, “O sistema jurídico, para kelsen, é unitário, orgânico, fechado, completo e auto-suficiente; nele nada falta para seu aperfeiçoamento”. (Bittar, pág: 183)
1.2 A Ideologia Positivista:
O racionalismo iluminista em muito influenciou a escola positivista do direito, em sua acepção doutrinaria o positivismo formaliza as relações internas do direito, aperfeiçoando, se não criando os estudos da hermenêutica jurídica.
O paradigma racionalista trabalha com a idéia de total compreensão das relações a partir de uma ótica racional – dedutiva. A lógica surge para diminuir os conflitos internos entre leis, assim sendo, o direito passaria a trabalhar com redução de complexidade lingüística, tendo um vocabulário próprio, diminuindo o campo de interpretação do interprete-aplicador.
Com Kelsen em sua Teoria Pura do Direito aprofundaríamos em muito a obsessão pelo método e do objeto específico do jurista, onde o direito passaria a ter um enfoque matemático, ou seja, o normativismo jurídico com seu corte epistemológico transfere as preocupações do mundo jurídico para norma, esta que deve servir a preceitos formais, deste modo, Kelsen pretende cientificar o direito, diminuindo seu prisma avaliativo com o chamado Princípio da Pureza.
A super valorização do método, típica da modernidade, levaria o direito à “desrazões sistêmicas, pois de nada adianta um ordenamento eivado de lastro ideológico de sustentação e incapaz de responder a mais elementar necessidade do cidadão comum ao qual se destina” ( Bittar, pág: 211).
2. Validade e Eficácia da Norma Jurídica:
A norma jurídica é um dever-ser e como tal prescreve determinada conduta tida como lícita pela autoridade competente, cominando ou não sanção aos agentes que cometerem ilícitos. A partir destas afirmações iremos distinguir validade e efetividade.
2.1 Validade:
Uma norma é valida quando é emitida por autoridade competente, respeitando os critérios formais de criação e publicação, desta forma “dizer que uma norma jurídica existe, significa, para Kelsen, dizer que ela é válida” (Bittar, pág: 183).
Como seria impossível imaginar um infinito de normas onde normas inferiores buscam sua validade em normas imediatamente superiores, Kelsen se apodera de concepção Kantiana, para criar o fundamento último de validade do sistema normativo – Norma Hipotética Fundamental – “uma norma não posta, mas suposta” (Fábio Ulhoa, Para Entender Kelsen, pág:12).
Partindo de uma análise dogmática jurídica, entendemos que não cabe questionar veracidade da norma, mas sim validade, então não poderíamos dizer que o direito é falível. Mas, o homem é falível e como tal sua criação segue seu destino, o direito foi feito para o homem e pelo homem, dessa forma pode ser questionado, não mais ficaremos presos a juízos universais – ora de certa forma o dogmatismo Kelsiano é um misto de jusnaturalismo e racionalismo, pois lança mão de conceitos universais para poder legitimar seu docere - então em um contexto como nosso o direito perde sua acepção universal, necessitando de teorias legitimatórias.
A partir do momento em que o dever-ser começa a ser questionado, surge a necessidade de avaliarmos a eficácia dessa norma. Para tanto deslocaremos o enfoque dogmatizante do direito para o ser, tentando enquadrar a expectativas da sociedade contemporânea ao fim último do direito - Justiça.
2.2 Eficácia:
Eficácia: “Propriedade de que tem um ato ou fato para produzir o resultado desejado” (Bittar, pág: 187). Nesse momento encontramos dois grandes problemas, o primeiro é como produzir o resultado desejado e o segundo a harmonização dos interesses conflitantes, pois o que é desejável para o pólo A não necessariamente é desejável para o pólo B.
Surge à proposta de Tércio Sampaio:
“A eficácia é discutida sobre dois enfoques, o semântico (eficácia sócia ou efetividade) e o sintático (eficácia técnica), atrelada que está a idéia de que se trata de uma certa capacidade da norma de produzir efeitos, sempre condicionados ao atendimento de certas condições, uma de natureza fática, outras, de natureza técnico-normativa”(Bittar, pág:196).
Seguindo esse entendimento podemos atrelar ao primeiro problema (como produzir resultados desejados) a concepção sintática da eficácia e ao segundo (harmonização dos interesses conflitantes, se não dizer aceitação social) uma concepção semântica. Sem deixarmos de ter em mente que a norma jurídica pode ser analisada sob três aspectos: “(1) se justa ou injusta; 2) se é valida ou inválida; 3) se eficaz ou ineficaz” ( Bittar, pág: 19)
O ideal seria que a norma fosse válida, justa e eficaz, mas como já vimos o direito é falível, assim sendo, tem que se resguardar de possíveis deslizes de seus destinatários. Surge à sanção como modo de reprimir atitudes ilícitas, incutindo o temor geral – prevenção geral – por meio da coação.
3. Crise de Eficácia – Legitimidade nas Democracias Constitucionais:
O que pretendemos mostrar aqui é que a crise de eficácia é antes crise da ideologia positivista, do estado liberal do que propriamente do direito. O direito é um instrumento criado pelo homem para gerir as relações interpessoais, como tal suas escolhas não são suas, mas das pessoas que o representam - o direito não é um organismo autônomo, é corolário de decisões políticas. Veja o que diz Dimitri: “A missão do operador do direito não é técnica ou científica. É principalmente política, porque consiste na execução da vontade política dos legisladores” (Dimitri, Direito e Política, pág: 111).
O contexto atual é de pulverização de conceitos, ética, moral e justiça, cada vez mais adquirem sentidos diferentes, como legitimar decisões jurídicas na contemporaneidade onde o “processo de crise da razão” e o “crescimento de posturas relativistas vem dando a luz formas tênues (pirronismo) e radicais (nilismos) de ceticismo” (Pablo Falcão, pág: 244).
Essa questão recai sem dúvida alguma na percepção do direito para o homem comum, e indubitavelmente em sua eficácia . Ora a norma foi feita para ser cumprida, mas com o descompasso entre norma-símbolo lingüístico e realidade fica difícil de ser respeitada pelos seus destinatários, novamente surge a sanção que se torna injusta, pois a lei não mais está sendo respeitada – letra morta – assim, o direito perde sua legitimidade.
4. O poder da palavra - Símbolo:
Antes de tudo o que é uma palavra? É uma convenção lingüística de um determinado povo, em um determinado tempo e espaço, que representa a verdadeira cultura. O homem determina e ao mesmo tempo é determinado pelo meio, então suas experiências (os fatos da vida) modificam sua visão do mundo, e esta conseqüentemente muda o mundo, haja vista, que o sujeito cognoscente ao observar um objeto impregna valores a ele e os modifica de acordo com seu intelecto, repassando através da linguagem suas concepções interiores. É este o grande legado do homem, pois ele se aprimora, e não fica preso a repetição da vida (João de Barro), ou seja, ele faz cultura.
Qual a força da palavra? A palavra é carregada de sentidos múltiplos, e como dito pode diferir de sujeito para sujeito, de lugar para lugar, de tempo em tempo, então onde está sua força? Justamente nos valores que a impregnam, estes valores são absorvidos pelos destinatários em função de código (símbolo – a palavra escrita), que as interpreta e responde favorável ou negativamente, dependendo do caso. Por exemplo, este símbolo: $. Quem ver logo identifica como sendo uma cifra que simboliza dinheiro. Mas, quem disse que isso significa isto? -Todo mundo!- Mesmo assim, todo mundo, não é resposta.
Um símbolo é uma convenção, então, alguém criou este significado e o repassou. (Daí surge à necessidade da etimologia, para identificar de onde surge a origem dessa palavra, e a semântica para identificar seus possíveis significados). Dessa forma, o emissor emite algo, que é apropriado pelo receptor, que conseqüentemente passa pra frente esta mensagem, por isso, que os significados das palavras são mutantes. O homem está a todo o momento absorvendo e modificando os significados, através de sua interpretação, ou seja, na maioria das vezes o que modifica é o sentido expresso (surge a pragmática, que analisa o sentido da palavra no contexto).
É nesse sentido que se encontra o nível de discussão da hermenêutica Jurídica, é ele que traz em si a força de significado, à vontade do legislador. Mas, como essa simples dedução não ajuda muito, o complicado deste estudo é que as palavras têm geralmente sentido equívocos que dirão análogos, tendo assim, o juiz a necessidade de rever todo um ordenamento e enquadrar um caso abstract (previsto na lei) a um caso concreto.
Conclusão a hermenêutica estuda os diversos sentidos das normas, tentando enquadra-la em um determinado caso.
5. Limitações da Hermenêutica Positivista e as Propostas por uma Teoria Legitimatória para as Decisões Judiciais em Contextos Eticamente Pulverizados.
A hermenêutica positivista trabalha com a idéia de vocabulário próprio, tentando minimizar a carga de valores dos sentidos das palavras – para ser mais exato, a uma padronização apriorística dos significados - onde a norma tem que ser subsumida ao caso mediante simples aplicação, ou seja, o juiz aplica a norma ao caso por critérios lógico-objetivos deixando de lado sua subjetividade.
A neutralidade jurídica é mais uma falácia do normativismo, o juiz é um ser humano situado no espaço e no tempo, e como tal traz consigo uma gama de valores só sua, na verdade ele cria norma, pois ao enquadrar o dever-ser ao ser ocorre valoração – ponderação.
Surge a perspectiva decisionista de Carl Shimitt, que reconhece “a decisão como independente do texto, servindo a constituição e demais ordenamentos legais muito mais para uma justificação posterior de uma opção ética criada casuisticamente. Assim se opõem, utilizando-as aqui como tipos ideais, as concepções subsuntivas mais tradicionais e as casuísticas, tudo entendido dentro do pressuposto explicado acima, ou seja, como o aumento de complexidade social torna mais agudo o distanciamento entre os signos lingüísticos e seus significados concretos” (Adeodato).
Dessa forma, fica evidente que o direito é fruto da comunicação e por mais que imponhamos regras a seu discurso não se esgotará as nuances interpretativas.
Reconhecido o problema cabe a nós encara-lo de frente, para tanto é necessário que legitimarmos essas decisões, assim sendo, proponho evitarmos os extremos acadêmicos e passarmos para uma análise dos prós e contras dos paradigmas racionalista e lingüístico.
Em primeiro lugar a norma jurídica é um ponto de partida para tomada de decisão do interprete-aplicador, não cabendo dizer que o texto normativo é um nada jurídico, o seu discurso é e deve ser analisado sobre uma perspectiva argumentativa - tópica e retórica, juntamente com a dialética devem trazer a tona à complexidade de nosso tempo para o direito – valorizando a intersubjetividade própria da linguagem humana e legitimando o direito a partir de decisões equânimes onde ambos os pólos na lide saiam satisfeitos.
6. Vias de Superação (Ceticismo, Retórica e Tópica) e a Ética da Tolerância:
Como visto o pensamento sistemático dado ao direito não mais supri as necessidades da contemporaneidade, então resta-nos buscar vias alternativas para uma nova postura frente ao problema da perca de legitimidade do direito, oriundo sim, da quebra da ideologia moderna.
Então surge o pensamento problemático para sugerir pensar a partir de problemas, não impondo verdades inquestionáveis e partindo para uma análise tópico-retórica do direito, onde um dado problema é analisado sobre diferentes prismas a partir de idéias sedimentadas na sociedade para assim legitimar as decisões.
Mas, como já dito propomos analisar os paradigmas de forma a colocar os prós e contras, então fica evidente que a teoria do discurso e da argumentação jurídica é de certa forma ingênua ao admitir uma predisposição comunicativa das partes, ainda mais em um contexto relativista sobre uma ótica cética que dirá nilística da sociedade pós-moderna.
Contudo, cabe evitar os descompassos teóricos e buscar adequar ao máximo o direito a preceitos equânimes para quem sabe termos uma ética da tolerância, reavivando a busca pelo uma sociedade onde o justo convencional coincida com o substancial e os homens da lei não mais sintam que um “bom profissional do direito é somente aquele que exerce a profissão jurídica com má consciência” (Dimitri, pág 293).