O rio está com sede
Na verdade eu não tinha coragem, mas inveja eu tinha.
Os garotos subiam no arco da ponte e, em pé ou de cabeça, mergulhavam no rio. Nadar eu nadava, mas tinha medo da corrente, porém era possível beber daquela água. As histórias contadas me traziam medo do rio, misturado com outras emoções. Afinal tudo é emoção quando se tem onze anos: valia a pena.
Era bom o banho de rio. Era bom se espichar no areão com o sol em cima. À noite, houvesse lua, havia serenata: “quem deixa sua terra, seu ninho, e segue outro caminho, tem grandes recordações.”
Pelo quanto posso, ouço o cancioneiro, chamado Buião, cantando a ponte que juntava as margens de um rio, chamado Pomba, que corta a cidade, chamada Pádua.
A cidade vejo amiga. A ponte vejo bela.
E o rio? O rio dos garotos, o rio do areão, o rio do sol e da lua, das canoas de pesca, passeio ou competição, de proa enfeitada de peixes ou namoradas, hoje, como a voz do cancioneiro, é triste.
A tristeza, dizem, vem de rio acima, vem lá das terras de Minas, alimentada pela química do que se pretende chamar progresso.
Estranho progresso que droga um rio, matando tudo que estiver rio abaixo. E o paduano, isto é mais estranho, como o cordeiro da fábula espera o lobo mineiro, um dia talvez, deixe de sujar sua água, matar seus peixes, poluir seu alimento, estragar as brincadeiras de seus garotos no arco da ponte.
Da mesma janela dos meus onze anos, não sinto mais a doce inveja e também não vejo mais a velha coragem que eu via na rua brigando por energia elétrica, por escolas, por estradas, por telefone, por papel, por arroz, por boi, pela instância hidromineral.
Acho que o rebanho todo, cordeiros-ricos e cordeiros-pobres, embora bebam da mesma água, estão dormindo, embora se cobrirão com a mesma terra. Talvez, quem pulava da ponte na água do rio perdeu a coragem de ver que o rio está morrendo. Ou estarão todos inertes, em cima da murada, quando desta vez é o rio que pede a todos mergulharem nele para salvá-lo.
Como visitante eventual, apaixonado, mas não cego, gostaria de ver passando na ponte o rebanho unido: cordeiro-estudante, cordeiro-professor, cordeiro-padre, cordeiro-pastor, cordeiro-político, cordeiro-revolucionário, cordeiro-fazendeiro, cordeiro-industrial, cordeiro-comerciante, cordeiro-operário, cordeiro-artista, cordeiro-pescador, cordeiro-de-Deus e cordeiro-do-diabo, berrando juntos: acorda Pádua, o rio está com sede !