Caminho que não tem fim

Os golpes contra o ego – antes de Freud, os de Copérnico e Darwin – vieram da ciência. Todos foram golpes contra visões de mundo estabelecidas em torno de uma “verdade” central: a preponderância do homem sobre a natureza, oriunda do predomínio da observação sobre o real – noutras palavras, do sujeito sobre o objeto, tendo o mundo como espelho da mente.

Ao admitir tamanha influência das conquistas do conhecimento sobre o aparelho psíquico humano, Freud abriu caminho para o desenvolvimento de uma epistemologia que levasse em conta a estrutura psíquica do homem no processo de construção do saber.

E é nessa trilha, que vai e vem do homem ao mundo, que Bachelard, erguendo pontes e dinamitando barreiras, percebeu a importância da ferramenta freudiana para a história e a filosofia da ciência.

Em busca de uma pedagogia que desconstrua o saber antes de construí-lo, e solicite o aprofundamento do que se conhece antes de novo passo rumo ao desconhecido, Bachelard escreve A Psicanálise do Fogo, em complemento à Formação do Espírito Científico.

Nesta passagem, surge a idéia de que a fantasia se opõe ao real sem negá-lo absolutamente. Na união do olhar do homem com o olhar chamejante, ressalta um elo desafiador a produzir temor e uma estranha cumplicidade. Como a recordar que entre o humano e o não-humano há um mundo – e dizer algo desse mundo a abarcar ambos.

O fogo é o próprio conhecimento, traduzindo a capacidade e a surpresa do homem diante do mundo, num misto de admiração e horror. O conhecimento, no espelho do fogo, é um deus bom e mau, que tem na ambigüidade a sua essência.

O conhecimento também é “descoberto” numa centelha, e seu uso está condicionado à nossa vontade, guiada pela inteligência – daí a ambigüidade, que também se diz da ciência, no bojo de uma amoralidade atávica onde o bem e o mal saem da mesma chama. O bem e o mal habitam a mesma natureza humana, a serviço de uma alma narcísica, à espreita de dor e prazer, prêmio ou castigo.

Assim como é no entrelaçamento do desejo e da cultura que a psicanálise se articula, também aí iremos achar os fundamentos da epistemologia de Bachelard. Com talvez uma diferença essencial: enquanto a psicanálise é uma “decomposição regressiva”, a epistemologia recorre à arqueologia do sujeito para empreender uma espécie de “composição progressiva” do saber.

A arqueologia epistemológica introduz um trabalho lento e interminável de verificação dos obstáculos e dos erros que irão proporcionar, por algum tempo, liberdade de movimento à nova experiência. O conhecimento, considerado como resultante de um processo arqueológico – ou sendo este mesmo processo – leva ao progresso da ciência, que se materializa na tecnologia.

A tecnologia, por sua vez, modifica os conceitos. Pois é o uso que dá dinâmica ao conhecimento. A construção dos objetos pela ciência é o que Bachelard nomeia de fenomenotécnica – quando um conceito se desdobra em uma técnica de realização.

É neste enquadramento que o clone, antes da técnica da clonagem, podia ser considerado uma quimera. Com o desenvolvimento da pesquisa genética, a fenomenotécnica do clone antecipa a sua experiência, introduz sua realidade. E mais – e é aí que epistemologia e ética se entreolham: a biotecnologia nos conduz a um refinamento conceitual, quando a fenomenotécnica é biofenômeno, e a ação humana sobre o mundo ultrapassa a manipulação da natureza exterior para resvalar na manipulação da natureza humana.

Para responder, há que perguntar – e para perguntar há que remexer nas respostas anteriores, desvalorizá-las e substituí-las, fazendo com que as perguntas de sempre se apresentem, estimulantes, como perguntas novas.

Cada qual ao seu modo, Freud e Bachelard mudaram a perspectiva do ‘problema da mente’. Freud alterou a visão do homem sobre si mesmo num âmbito geral; e Bachelard alterou essa visão numa medida restrita, relativamente à epistemologia. Sua intenção é promover uma “psicanálise especial, útil como ponto de partida de qualquer estudo objetivo”. Quer espiar através da lente psicanalítica o material que serve como amostra de como adquirimos, utilizamos e substituímos o nosso conhecimento.

Vale lembrar que Freud não quis ser um hermeneuta, e sim, um cientista. A psicanálise deve aderir à visão de mundo da ciência, segundo ele. A redução dos sintomas, dos sonhos e dos comportamentos a uma explicação insere a psicanálise na razão de ser da ciência. Mas a psicanálise e fenomenologia vão na mesma direção – a de nossa arquelogia, segundo Merleau-Ponty.

Bachelard utiliza a mesma trilha como atalho para o futuro, uma vez que a epistemologia pretende permitir o avanço progressivo e cumulativo do conhecimento. A arqueologia do sujeito é aproveitada em uma visão evolutiva da razão e da ciência humanas. Os erros do passado não devem servir a nada além de comparação para a história das ciências. Bachelard afirma que o passado ilumina a marcha da ciência, mas não deixa de recordar a importância do presente, pois há ocasiões em que é o presente que ilumina o passado.

A psicanálise examina o psiquismo como um aparelho sem piloto, uma máquina semi-automática. A dificuldade de aproximação entre filosofia e psicanálise vem muito dessa diferença de ponto de vista, já que a filosofia moderna está centrada no sujeito, seja no cogito cartesiano, no empirismo inglês ou no “eu penso” (sujeito transcendental) kantiano.

Bachelard aproveita as lições da suspeita psicanalítica para colorir o ceticismo científico com um pouco de poesia. Mais importante, contudo, do que a incorporação de um estilo ao saber científico, é a iniciativa de formular perguntas ao inconsciente, que o epistemólogo francês adota.

Freud e Bachelard concordam com o fundamento segundo o qual conhecer é um bem. Freud abominava o misticismo. Bachelard também era radicalmente contra tudo o que lembrasse o primitivismo do espírito pré-científico. Em ambos podemos achar a noção de conhecimento como um livro aberto – que não se fecha – cuja decifração, sempre parcial, depende da vontade e de um tempo de leitura.

O valor positivo do conhecimento é nítido em ambos: para Freud, o remédio possível de qualquer “cura” que tenha no inconsciente a causa de seu distúrbio; para Bachelard, o único caminho do esclarecimento coletivo. Nos dois, a ciência é notada em sua essência: no primeiro, está no varejo, no caso individual e na prática de pesquisa; e no segundo, no atacado, na organização de um conteúdo sistematizado e coerente com um passado de equívocos e enganações.

A crítica científica da racionalidade submete a mente narcísica à razão científica, afrontando convicções profundas de origem, muitas vezes, religiosas. A heresia da psicanálise está no desafio aos credos de segurança que durante milênios ampararam o homem na exaltação do pleno conhecimento sobre si mesmo.

A tradição filosófica enfatiza a consciência. A fenomenologia parte da primazia à consciência intencional. A psicanálise, de modo diferente, ressalta o inconsciente. Freud não vê a consciência como ponto de partida, nem a intenção autônoma na atividade consciente como o mais relevante. Bachelard tampouco. A diferença é que Bachelard reconhece na intenção a capacidade de correção ou de limpeza dos entulhos do inconsciente. O esforço do conhecimento que caracteriza o espírito científico, segundo ele, depende da intencional remoção de obstáculos inconscientes, através da ação mental que vence o muro psicológico.

Para Bachelard, o espírito pode mudar de metafísica, mas não vive sem metafísica. A psicanálise é herdeira da crença no poder da subjetividade. Apesar de a linguagem positivista de Freud ser rejeitada em bloco por muitos filósofos, Bachelard, como Lacan, percebeu na psicanálise não apenas uma técnica, mas uma nova orientação, com profundas interrogações filosóficas sobre o processo cognitivo.

É a partir do enfoque psicanalítico do conhecimento que Bachelard irá se juntar a Freud na expansão do problema da mente: enquanto um fragmenta o homem por dentro, revelando a ignorância do ego, o outro busca, nessas mesmas ruínas, o material para a reconstrução que constitui o progresso científico.

A compreensão da complexidade da mente é o grande achado psicanalítico. Idêntica espécie de complexidade que impregna hoje todas as ciências, onde é sinônimo de tácita incompreensão. O espírito científico sabe onde estão seus limites, e por isso pode desafiá-los.

Ao pesquisar o cogito da ciência na arquitetura psicanalítica, Bachelard transforma-o em um coletivo dialético, o cogitamus. Afinal, não é outra a proposta da psicanálise do conhecimento, senão aceitar em todas as suas conseqüências a “tarefa de tornar-se consciência”, de que fala Ricoeur.

Este é um dos traços essenciais da epistemologia de Bachelard. Filósofos e psicanalistas têm se perguntado que tipo de ciência a psicanálise pode fazer. Bachelard deu uma das possíveis respostas: a psicanálise do conhecimento.

Trata-se do encontro da ‘ética da existência’ freudiana com a ‘estética da inteligência’ – expressão com que Bachelard definiu a busca científica.

Portanto, vislumbramos o mesmo velho problema grego ampliado por Freud: o “conhece-te a ti mesmo” salta, contudo, do inconsciente para o mundo. Uma vez recordado o corpo, pela concepção freudiana, o homem compreendeu melhor como se conhecer. A estética da inteligência soma-se a esta tarefa, enfatizando os erros como propulsores do conhecimento e oferecendo à razão motivos para prosseguir por um caminho que não tem fim.

(In "A psicanálise do clone", ed. do autor, Recife, 2007)

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 30/03/2008
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