Carece de ter muita coragem...

“Enche-te de coragem contra teus

inimigos e sê o que realmente és!”

disse Krishna para o indeciso e confuso Arjuna...

(Aqui será comentado partes relevantes do enredo de "Grande Sertão - Veredas". Por isso, caso alguém ainda não tenha lido o livro e se importe com o fato de descobrir o final da história, aconselho a deixar para ler tal artigo após a leitura deste fantástico livro de Guimarães Rosa)

“Carece de ter coragem, carece de ter muita coragem...” – é o que diz o Menino em meio à travessia do Rio São Francisco para o pequeno e medroso Riobaldo. Eis uma das passagens mais belas e profundas do livro “Grande Sertão: Veredas”; passagem esta que selaria para sempre o seu misterioso envolvimento com Diadorim, figura ambígua em todos os aspectos que se possa imaginar, trazendo em si todo um universo de opostos, reunindo os extremos de um modo que desafia a razão e deslumbra nosso ser; “derramando pelas páginas do livro uma ambivalência que torna tudo possível” e insuflando na vida de Riobaldo algo que a aproxima de um verdadeiro mistério religioso. Diadorim é o ponto de apoio em torno do qual gira toda a história de Riobaldo; núcleo gravitacional que modifica tudo o que há no mundo, como se tudo existisse em relação a Diadorim – desde o pequeno manuelzinho-da-crôa, passando por Otacília, por Hermógenes e pelo próprio ser de Riobaldo, em suas múltiplas e variadas formas. Diadorim converte-se então em símbolo da completude, daquilo que é inteiro, uno, que sabe o que quer e não teme coisa alguma; canalizador do destino e da ligação de Riobaldo com o mundo sertanejo dos Gerais, como se fosse o caminho predeterminado do curso de um rio – desse rio chamado Riobaldo, que traduz tal situação para si mesmo pela expressão “amizade mandante”.

Com relação a esse aspecto da inteireza, Riobaldo se posiciona no pólo oposto: ser indeciso, medroso, pusilânime, herói falho, que titubeia, que não consegue encontrar a unidade entre seu ser interior e seu ser exterior, isto é, entre o pensar e o agir; nele sempre sobra ou falta algo, ora contemplando e meditando sobre o mundo, ora agindo sobre este mesmo mundo; mas nunca inteiro num único lugar; funcionando como um pêndulo que vai de um extremo a outro, sem poder parar em qualquer ponto que seja. Aliás, pára sim, pára com o coração em Diadorim. Se ele, Riobaldo, passeia pelos extremos – o “jagunço letrado” –, Diadorim é o centro imóvel e fixo; Diadorim é a certeza contra a confusão do mundo. Entretanto, não poderia haver certeza mais incerta para nosso herói! Diadorim, como personificação da multiplicidade do universo, do “unificadamente diverso” como disse Fernando Pessoa, torna-se a certeza da mais absoluta incerteza de tudo o que há e também do que aparentemente não há. Diadorim é a suspensão de todas as certezas, a subversão de todas as aparências. Diadorim é a o sagrado dentro do profano ou o eterno dentro do instante. É a completa certeza do princípio mais incerto: “você sabe do seu destino, Riobaldo?”

Diadorim é alvo e meio ao mesmo tempo: o “amor de ouro”, o amor destinado, o amor que abarca e carrega de sentido a vida inteira, como se Riobaldo ganhasse forças para ser Riobaldo, para transformar-se em Riobaldo, não somente por ele, mas principalmente para ela – para Diadorim: o ela que se mostra como ele... “Diadorim é a minha neblina”; “Sabendo dele o senhor sabe tudo de mim”. Aliás, o próprio nome Diadorim revela-se ambíguo, não sendo nem masculino nem feminino – “é nome de passarinho?” Seu nome de batismo era Maria Deodorina; e há quem diga que a partícula “Deo” faz referência a Deus; da mesma forma que se poderia dizer que a partícula “Dia” faz referência ao Diabo... Não há como saber ao certo. “Tudo é e não é”. No universo de Grande Sertão, importa menos a conclusão final do que aquilo que se sente durante a travessia, pois é ali que está “o real”. Talvez se Riobaldo não estivesse tão certo de Diadorim ser um homem, ele pudesse reconhecer a verdade... E só para concluir os paradoxos: se Deus, na tradição cristã, é onisciente, onipresente e onipotente, então Ele próprio criou e perpassa o Diabo; ou seja, os dois convivem misturados: “O diabo na rua, no meio do redemunho”. A diferença é que Deus é a afirmação do todo; ao passo que o Diabo é aquele que divide. Diadorim, então, como portadora do divino, faria oposição a Hermógenes, portador do diabólico – homem de índole perversa, tido como pactário, responsável pela morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim, e da conseqüente cisão do grupo.

E como reage Riobaldo diante de toda essa conjectura? Por “procurar encontrar aquele caminho certo, eu quis, forcejei; só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha mão”. Quer dizer: ele pactua com o próprio Diabo. Mas jamais sabe se de fato pactuou ou não, já que o mesmo não apareceu à noite na encruzilhada das Veredas Mortas. “O diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma”, fazendo referência talvez ao “diabo que vige dentro do homem”. O motivo, certeiro, para o pacto, não se diz; e é bem provável que não se diz porque realmente Riobaldo não saiba. Tudo neste mundo é muito misturado. “E pão ou pães, é questão de opiniães”. Pode-se aqui apenas tracejar alguns motivos (proteção de Diadorim, morte do Hermógenes, desejo de comandar e de se destacar do resto dos jagunços, desejo de ser mais forte, mais destemido); no entanto, jamais chegaríamos ao âmago da questão. Mesmo se Riobaldo dissesse, ele provavelmente erraria; ou, melhor dizendo, não acertaria de todo – acabaria dando apenas a sua versão dos fatos, pois “a vida não é entendível”. E é bem capaz que, apesar da culpa pela morte de Diadorim, Riobaldo tenha se associado ao Diabo de uma maneira semelhante a que se ligou com o Menino – em meio à bruma, em meio à neblina, sem saber ao certo o porquê (ou porquês) de tal ato, atraído por essa fantástica figura – o “sem-nome”; com a enorme diferença que em um o fator determinante foi o interesse, e no outro o encanto, o fascínio - o amor. Talvez não houvesse outra alternativa para ele: “Essa vida nem é nossa mesmo” – como disse certa vez Diadorim. E apesar da culpa pela morte da companheira e amada, e do receio pelo fato de ter vendido ou não sua alma; se ele não o fizesse, o grupo não atravessaria o Sussuarão, Hermógenes não seria aniquilado e Diadorim continuaria homem, sedento por vingança, tendo como objetivo principal de sua vida o assassinato daquele que matou seu pai. Se ele fizesse o oposto nada garantiria que Diadorim se salvasse; pelo contrário, talvez até sofresse mais.

Eis a lei dos “futuros antanhos”, do “destino preso”, constituindo uma metafísica onde os homens só podem ser aquilo que já estava escrito para eles serem; e por mais que se debatam querendo a sua vida por seu próprio querer dominado, sempre haverá a contrapartida do acaso, e a atração de desejos aos quais não cabe ao homem compreender-lhes a essência (“uma inexaurível tensão entre o que há em nós e o que existe para mais além”). Trata-se aqui de um universo que faz lembrar os destinos trágicos daquelas famosas peças gregas, onde a vontade do herói é apenas mais um artifício, mais uma linha manipulada pelas forças cósmicas para a direção de sua “própria vida”.

Acredito que a questão aqui não é culparmos ou não Riobaldo pelo pacto, como ele mesmo o faz afirmando que “forcejou” demais; mas buscar saber se o pacto seria ou não remediável, ou, em outras palavras, se o pacto fazia ou não parte dessa galeria de “ações certas” conforme o destino projetado de cada um. “Você sabe do seu destino, Riobaldo?” Talvez, a grande diferença entre o pacto de Riobaldo e o pacto de Hermógenes seja que para o primeiro Diadorim teve um peso considerável, enquanto que para o segundo o pacto ocorreu por puro interesse – sem amor algum no coração. Talvez, o encontro com o Diabo fosse premissa obrigatória para o seu “estreito” caminho – a mais dura das provas, a aliança com o mal para bater o mal. Todos sabem que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. E quanto a um pactário que mata outro pactário? Será que o destino é o mesmo? E mesmo que seja, o que viria após os tais cem anos? É uma pergunta interessante – e aparentemente sem resposta...

De qualquer modo, quando Diadorim e Hermógenes morrem, o sentido da vida jagunça, da vida heróica de Riobaldo, se desfaz, levando consigo a poesia do sertão, que outrora estava encarnada em Diadorim. O mundo mítico e fantástico finda-se, exaure-se: não há mais por que lutar. A vida de ouro se apaga, restando apenas sua vida de prata – vida sem o brilho da primeira, vida burguesa, de dono de fazenda que só tem que cuidar da manutenção de seu cotidiano. Consolida-se então o pensar sobre o agir; a busca do sentido daquilo que ele viveu. “Você conheceu Diadorim?” Pois Riobaldo conheceu.

Aqui sou obrigado a retificar o meu próprio comentário, pois nada indica que a vida de prata (sua vida não aventureira, simbolizada na figura de Otacília) possa ser entendida como algo menor ou mais vil que a primeira fase de sua vida – a fase guiada por seu amor de ouro. Pois da mesma forma que o pacto de Riobaldo foi diverso do pacto de Hermógenes, o Riobaldo fazendeiro significa outra coisa do que, por exemplo, o fazendeiro Seu Habão, capitalista de corpo e alma. Ou seja, talvez tal vida seja tão importante quanto a primeira, apenas em um sentido diferente; um contínuo de um viver que está muito além dele e de qualquer um compreender de todo. Afinal, se não fosse pelo Riobaldo fazendeiro, sequer haveria o “Grande Sertão: Veredas”, que não é apenas produto de acontecimentos de sua vida, mas também de suas reflexões empreendidas na fazenda que antes era de Selorico Mendes. E quem poderia lançar pedras contra o narrador de um presente desses?... De fato, “viver é muito perigoso”.

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