Em busca de Deus como Verdade Absoluta

"Mestre não é quem ensina

mas quem de repente aprende"

Guimarães Rosa - Grande Sertão Veredas

Irei discorrer aqui sobre alguns aspectos de Deus. Tal texto pode ser compreendido como um esforço de aproximação consciente em direção a Deus e de alguns efeitos que tal aproximação nos provoca. Como aqui não será possível comprovar a veracidade metafísica de tais palavras, o texto pode ser fundamentalmente compreendido tanto pelo lado psicológico e filosófico como também por um lado mais ético e moral. No entanto, faz-se necessário que se diga que o esforço aqui é direcionado numa perspectiva espiritual, ou seja, um esforço que atravessa e cruza os mundos físico, psicológico e metafísico, integrando-os e relacionando-os em suas diversas especificidades. Como toda tomada de consciência, sobre o que quer que for, é algo positivo e esclarecedor, em certa medida, resolvi então escrever esse texto a fim de dar uma pequena contribuição para tal assunto. E também tendo a intenção de mostrar que a idéia de Deus, longe de ser uma excentricidade ou um simples delírio psicológico, fruto de alguma carência de ordem patológica, trata-se, na menor das hipóteses, de um conceito extremamente rico e de altíssima amplitude, capaz de estruturar a experiência humana, como se ela aqui fosse vista por olhos muito mais distantes que os habituais ou então por olhos muito mais profundos - olhar esse que, como um grande espelho cósmico, nos revela a nossa verdadeira dimensão, abrindo-nos à experiência do absoluto, sem perder o contato com a fugacidade da vida, integrando em si as diversas facetas do contato humano com o mundo, como se fosse o vértice que unifica os lados e as arestas de uma pirâmide. Existindo realmente ou não, a idéia de Deus, mesmo que surgindo com outros nomes, configura-se como uma idéia arquetípica para a consciência humana, a qual necessita sempre de um outro, real ou imaginário, para servir-lhe de parâmetro às suas idéias e concepções - à sua experiência de mundo e de realidade.

1ª Parte: Aspectos Intelectuais e Cognitivos

ou

Em busca de Deus como Verdade Absoluta

Deus, sendo a Verdade Absoluta, configura-se como Aquele que está para além de toda e qualquer verdade relativa. Ele é o ser que se localiza no ponto mais alto ou no ponto mais central, de onde pode abarcar, ver e compreender todas as infinitas verdades relativas. Deus, então, por estar situado para além de todos os fenômenos, pode compreender a todos os seres e objetos que se localizam abaixo e dentro Dele, de tal modo que cada uma das infinitas verdades relativas possa ser posicionada em algum ponto em relação à Verdade Final – esta que, longe de estar meramente localizada no fim, atravessa gradativamente a todas as verdades relativas, unificando-as e estruturando-as em um grande espaço cósmico de infinitas e múltiplas perspectivas. Cada uma de tais verdades pode, então, ser compreendida como um degrau que tem como meta final a Deus, que é a Verdade que está para além de nossos falhos sentidos e de nosso precário intelecto. Ou, em outras palavras, é bem possível que cada verdade relativa carregue em si algo da Verdade Absoluta, porém jamais a tocando em sua total e profunda completude.

Assim sendo, Deus torna-se o alvo e o objetivo de todo filósofo, pesquisador e inquiridor, independente de sua natureza e espécie, e independente se Deus existe como uma entidade consciente ou simplesmente como uma verdade psicológica. Poderíamos perguntar: o que é uma árvore? Ou então, o que significa a palavra árvore em relação com o objeto que tal palavra pretende representar? No fundo, a palavra árvore não passa de um super-reducionismo cognitivo. A palavra árvore não passa de um mero nome para indicar e trazer à mente algo que está muito além de poder ser apreendido com os nossos sentidos ou com o nosso intelecto. No âmbito da Verdade Absoluta, ninguém pode saber o que de fato é uma árvore, ou o que existe para além e ao cabo de tal palavra. A não ser Deus, obviamente, ou alguém que possa ter uma experiência de realidade semelhante à Dele, tudo o que podemos fazer é criar aproximações do que de fato seja uma árvore.

Se isso for válido para um objeto como a árvore, que apesar de sua imensa complexidade e riqueza ainda é algo de consistência bem física, o que dirá para realidades mais etéreas como o mundo psicológico ou mesmo o mundo espiritual! O fato é que em termos humanos não existe qualquer tipo de Verdade Absoluta que possa ser apreendida ou interpretada em sua totalidade e amplitude. Podemos alcançar apenas algumas verdades relativas. As quais, longe de serem desprezíveis, configuram-se a nós como de extrema importância. Não é possível chegar à Verdade Absoluta do que seja uma árvore ou a Verdade Absoluta de um crime praticado, porém pode-se ao menos alcançar verdades bastante úteis e benéficas a respeito de tais coisas, e que, por conseguinte, se aproximam em certa medida da Verdade Absoluta.

Prosseguindo nessa mesma linha de raciocínio, faz-se necessário aqui dizer que, assim como a Verdade Absoluta é um ideal de todo inatingível para a mente e a percepção humanas, todos os demais conceitos absolutos também o são. Não existe na humanidade Justiça Absoluta, Opinião Absoluta, Gozo Absoluto ou mesmo um Cristão Absoluto, um Existencialista Absoluto, um Cínico Absoluto, a não ser que estes sejam seres ideais, criados na imaginação de um povo ou provenientes de uma realidade supra-humana, que está muito além de nossa compreensão. Falar sobre Krishna, Jesus Cristo, Buda, etc., é visualizar e discorrer sobre esferas de entendimento que estão muito além de nossa vaga experiência. Em essência, tais seres são inapreensíveis, mais do que qualquer outra coisa neste mundo. São inefáveis e incompreensíveis. Personificam em si mesmos todo o imenso e infinito mistério da Vida e do Universo. Interpretar, portanto, tais seres como pessoas normais, e suas palavras como meros conceitos ideológicos, é roubar e extrair Deles e de Suas palavras todo o profundo conteúdo místico e espiritual ali contidos. Não se pode compreender em termos absolutos Krishna, Cristo e Buda; pode-se apenas experenciá-los da maneira que nos é possível e permitida. Krishna, Cristo e Buda são um alvo localizado no infinito, tomando como ponto de partida nossas capacidades e possibilidades perceptivas. E é bem possível que a busca por Deus seja eterna e constante, tanto neste como também em outros mundos e realidades, apesar Dele nos permear e nos acompanhar em cada um de nossos passos.

Deus, ou a Verdade Absoluta, está sempre conosco. E é próprio da alma humana almejá-lo em seus diversos e múltiplos níveis. Somos por natureza insatisfeitos com relação ao meramente parcial, imperfeito e provisório. Desde que a consciência humana não se torne rígida em algum ponto, enovelando-se como uma cobra peçonhenta em torno de alguma idéia ou visão de mundo, em torno de algum objeto qualquer, a busca pela Verdade Absoluta se faz e se desenrola, mesmo que ela receba mil nomes diferentes ou apenas a simples classificação de um certo rigor epistêmico. É bem possível que sejamos mesmo uma dialética infinita em direção a Deus, onde cada etapa tende a ser revista e ampliada, em sucessivas teses, antíteses e sínteses, cada qual sempre mais abrangente, complementando-se e abrangendo as antigas, como que localizada em um ponto cada vez mais alto e mais amplo.

Desde a criança que quer saber de onde veio, até o sábio que olha as estrelas questionando-se sobre a origem dos seres, passando por todo tipo de conhecimento que se possa conceber... Tudo, tudo mesmo, pode ser compreendido como uma busca por Deus. É próprio do ser humano buscar a Verdade e a Perfeição. É claro que tal afirmação não se reflete de maneira equânime para todas as pessoas. Para cada época, para cada grupo social, para cada fase da vida uma forma ou outra pode ser privilegiada. Mas em todas as áreas pode-se ver isso: o cozinheiro que tenta criar a mais saborosa receita, o pintor que tenta pintar a mais sublime obra, o poeta que tenta escrever o mais belo verso. E, também, em oposição complementar, aqueles que concebem no imperfeito e nos deslizes humanos a mais completa verdade sobre a existência: a obra que tenta mostrar a mais decadente imperfeição, a mais angustiante confusão, o maior desamparo, a verdade da ausência de toda e qualquer verdade possível e imaginável, onde o pobre ser humano possa ancorar o barco de sua consciência. Não são poucos os que neste mundo cultuam a imperfeição e a mentira, seja por ignorância mesmo, seja por simples má-fé e vontade de poder, no lugar de promover uma busca eterna ao âmago da realidade, buscando sempre e em todo momento a transcendência de nossa própria condição e consciência.

Nesse sentido, a busca por Deus não pode estar aliada a um desejo de posse, de controle e de poder. Quem se acha dono da Verdade Absoluta, da Teoria Mais Perfeita, do Comentário Final, caiu vítima de sua própria pretensão e arrogância. E possivelmente será ridicularizado ou negado, seja pela vida, seja pelos outros, seja ainda pela própria consciência nos momentos de descrença. A vida humana, em termos de busca, exige ou nos ensina o exercício da humildade. Não no sentido pejorativo que muitos concedem a tal palavra. Mas no sentido de que a eterna busca pela sabedoria está sempre em oposição a qualquer apego demasiado, orgulhoso e enrijecido a alguma informação ou conhecimento adquiridos. É bem possível mesmo que a natureza real da alma humana seja semelhante à de um rio, configurando-se como um fluxo contínuo ao grande e largo oceano divino. Quando tal lei é desrespeitada, o vício do orgulho, da pretensão e da arrogância, o ódio, a violência e o medo se fazem cada vez mais presentes. Pois tudo o que é duro teme ser quebrado. E antes de imaginar tal possibilidade, a pessoa, vítima de tal estado psicológico, atenta contra o próximo, em uma eterna busca de destruição, tingida pelo medo mais vivo e pelo ódio mais envenenado. A vida dessa pessoa torna-se um eterno conflito. Seu cotidiano, um imenso campo de batalha. As horas e os minutos, um verdadeiro suplício. Pois a Vida muitas vezes se revela psicologicamente como uma constante negação daquilo que é extremamente rígido e imutável. A Vida exige movimento e mudança. Exige crescimento e aprendizado. É claro que categorias se fazem necessárias também, assim como um rio precisa de suas margens, porém categorias amplas o suficiente para abarcarem o móvel e o contínuo fluxo da percepção.

Por exemplo, nas imagens de Deus, ou na busca pelo Deus abstrato, portador da Verdade Absoluta, o esforço se faz permanente, mas a compreensão e experiência de Deus é sempre diversa. Em Deus pode-se visualizar toda a Verdade Absoluta, não no sentido intelectual, mas no sentido de que podemos, por meio de tal imagem ou concepção, buscar constantemente algo a mais, algo para além, pois apenas podemos intuir uma Verdade Absoluta, cabendo a nossa consciência buscar, pelos meios que lhe forem possíveis, algo que a aproxime daquela incomensurável Verdade que pode ser vagamente intuída pela visão das imagens divinas ou pela meditação na idéia de Deus. Quanto mais forte e intensa se torna a experiência do Deus vivo dentro de si, mais a consciência, portanto, tenderá a buscá-Lo, como que tomada por um amor incondicional à Verdade, isto é, a Deus. Tal amor, longe de nos apartar da experiência cotidiana, nos aproxima dela. Pois no fundo é somente a rigidez que nos afasta dos outros e de nós mesmos. Uma pessoa de concepções rígidas e verdades miúdas sempre desejará destruir e anular aquele que lhe faz oposição, aquele que, mesmo que não intencionalmente, nega o seu minúsculo mundo psíquico – essa sua caixinha de riquezas, em torno da qual todo seu ser tomado de avareza se estabelece. Uma pessoa que sabe em seu coração que a Verdade Absoluta não se encontra no mundo dos homens, mas sempre na busca eterna e constante de Deus, tanto como entidade, como também como Verdade que há em cada coisa e aspecto do universo, ou ainda como sendo um desejo meramente psicológico; uma pessoa que vivencia algum desses aspectos, ou todos eles conjuntamente, tenderá a abraçar toda a humanidade, validando assim o saber não apenas dos demais seres humanos, como também até o saber experiencial de outras espécies de vida. Pois, partindo do princípio de que a ninguém nesse mundo cabe a Verdade Absoluta, só possuindo-a em sua totalidade o próprio Deus, toda opinião e todo saber, toda verdade relativa, se não for utilizada como meio de fuga, pode ser um passo a mais que se dá em direção a Deus.

Tal fato, maravilhosamente, torna cada encontro entre dois seres vivos como uma possibilidade de aprendizagem e encontro com o divino. Deus se torna mais próximo de todos aqueles que abrem seus corações para os demais, buscando compreender-lhes em sua essência mais imperceptível e misteriosa, isto é, no Deus, símbolo do mistério absoluto e indizível, que há em tudo e em todos. No fundo de cada alma há Deus; em cada relação há Deus; em toda busca sincera e autêntica há Deus. É nesse sentido que o amor a Deus e o reconhecimento de nossa posição cósmica, isto é, o reconhecimento das possibilidades reais de apreensão de nossa consciência, abre-nos para o mundo e para os outros, abre-nos para cada encontro, tornando-o algo verdadeiramente sagrado. Porque, no final das contas, cada encontro é uma oportunidade que o universo nos dá de chegar mais próximo de Deus: Deus Ele mesmo e Deus que há em cada partícula e ser desse universo. Uma pessoa que diz conhecer Deus, mas renega algum semelhante, e faz sofrer algum animalzinho, conhece menos Deus do que uma pessoa que, em sua bondade simples e pura, lança seu olhar amoroso sobre toda a Criação, mesmo que não pense tanto na idéia de Deus. Em outras palavras, tal pessoa vive a idéia de Deus em seu coração em cada encontro e oportunidade que a vida lhe oferece. É claro que não cabe aqui ficar hierarquizando ou atribuindo mais valor a um modo ou outro de vivenciar Deus. Porém, acredito que quem ama seu semelhante, quem ama cada ser vivo e cada grão de areia desse planeta, pode experimentar Deus de uma maneira mais agradável do que aquele que O busca apenas intelectualmente. No entanto, aquele que busca Deus de todas as maneiras possíveis, esse, parece-me, pode experimentá-Lo de uma maneira mais completa e abrangente – e assim estar mais próximo Dele.

Deus, então, longe de ser um mero símbolo religioso, pode ser compreendido também como uma verdade psicológica, uma verdade filosófica e uma verdade científica. Pois Deus enquanto símbolo está contido em cada canto e cada átomo desse Universo, norteando dessa maneira as nossas consciências para sempre adiante, como um rio que flui. Deus está contido desde a mais micro das realidades, até o mais macro dos cosmos. Está contido em nosso corpo e em nossa alma. Está contido em cada uma de nossas vontades e desejos. Está contido em cada uma das religiões, filosofias e ciências. E cada uma destas está localizada em determinado ponto em relação a Ele. Nesse aspecto, o pecado, longe de ser alguma ação específica, muitas vezes determinada pelo tempo histórico, é apenas o apego.

Todo apego a algo que imobiliza e corta o fluxo da consciência é um pecado. Apegar-se a qualquer um dos mínimos e fragmentados aspectos da realidade fenomênica torna-se um crime para a alma, que deseja sempre o movimento. E o apego, longe de ser algo que pode ser medido exteriormente pelos outros, só pode ser constatado pela própria pessoa ou por alguém que busca sinceramente enxergá-la tal como ela é, ou seja, alguém que nutra por tal pessoa esse amor de compreensão, que longe de julgar verticalmente e lançar pedras, procura sempre e antes de qualquer coisa compreender tal ação em sua completude, em sua verdade mais ampla e espiritual. Pois cada ação, longe de ser um simples apego, carrega em si algum sentido, algum significado, algum medo, algum anseio, alguma coisa. Buscar compreender uma pessoa, em todo seu mistério e imensidão, é trabalho para uma vida inteira, podendo frutificar apenas onde há grande amor (no sentido espiritual do termo). Buscar compreender o próximo é almejar atingir o Deus que nele habita. E, por essa razão, buscar compreender o próximo é uma ação sagrada, pois é como se fosse o encontro do Deus-em-mim com o Deus-nele, pois tanto um como o outro, como também a relação que nos une, são portadores do divino.

Viver tais palavras, o mínimo que seja, torna-nos tão mais atenciosos e respeitosos, tão mais ponderados e conscientes, calmos e pacíficos, humildes e sábios... pois sabemos que sempre estamos em Deus, com Deus e em busca constante de Deus. E sabendo disso, nada mais nos falta. Tornamo-nos completos em nossa busca eterna por Ele, pois paradoxalmente já O temos, ou melhor, já O somos. Tudo se vê revestido e imerso no sagrado, de tal modo que podemos até visualizar o eterno como base e palco de cada situação, momento e opinião vivida. Nada é solto ou fragmentado. Pelo contrário, cada opinião, cada verdade relativa, cada impressão e sensação de nossa alma e de nosso corpo estão localizadas em algum ponto dessa imensa e descomunal estrutura cósmica que tem como corpo e finalidade o próprio Deus. E Ele tudo compreende, tudo vê e tudo enxerga, pois tem dentro de si todo o Universo experienciável e sabe-se lá mais Deus o quê... Deus, portanto, não é somente um ideal existente fora de nós, mas também um ideal posto dentro de nós mesmos e existente em cada relação - um ideal de abrangência de consciência, de conduta e atitude espiritual. É não só uma filosofia, como também é uma ciência e uma religião, uma ética e uma moral.

Eis aqui uma breve e simples pincelada de alguns dos aspectos mais intelectuais e cognitivos da idéia de Deus e daquilo que tal realidade cria e provoca em nós. Do que significa estar com os olhos Nele, em busca Dele, e do que significa virar-Lhe as costas. Do que significa, enfim, estar apartado Dele e da realidade maior do mundo, e do que significa buscar comungar a todo instante a realidade mais divina que há desde a superfície de cada coisa até o seu âmago de mistério e profundidade... lugar onde poderemos encontrar, assim esperamos, Deus em toda sua glória e esplendor.

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