Questão de justiça

“Justiça é a substância da civilização,

a essência da sociedade,

a síntese da política cristã".

Rui Barbosa

Temas são imprevisíveis. Alguns se fazem de difíceis, penoso é abordá-los. Outros chegam como quem não quer nada, intrometem no nosso pensamento, praticamente atiram-se aos nossos pés. Há pouco meu concunhado me convidou a participar de um projeto a quatro mãos sobre Justiça e Ética. Depois foi a vez de minha filha me envolver numa prosa sobre justiça social. Por último, um amigo virtual me incitou a escrever sobre o “sentimento de justiça”. Três episódios isolados e aparentemente desconexos: tentei fazer que não era comigo, que médica não sabe discorrer sobre justiça. Não houve escapatória, fui laçada. Arrisco.

Por conta da educação que recebi, meus dias em menina começavam sempre com o Pai-Nosso. Eu tinha fome de religiosidade. Cresci, tive minhas próprias filhas, continuo ligada a Deus, mas opto por ensiná-las a começar seus dias com o Pão Nosso. Hoje somos todos famintos de humanidade. Por onde quer que se olhe, os sinais são espalhafatosos, quase pirotécnicos: o caminho digno para a libertação do ser humano passa pela prática da justiça.

Para Aristóteles, a justiça se caracterizava pela legalidade e igualdade. No mito grego, Thêmis, deusa da justiça, protetora dos oprimidos, conselheira e esposa de Zeus, deu à luz as Horas, responsáveis pelo fluxo da vida e equilíbrio da sociedade. É representada tendo à mão uma balança, símbolo da equidade e equilíbrio. Com uma venda nos olhos se faz imparcial.

Thêmis também era deusa dos oráculos. Faz sentido: entender a dinâmica da justiça é tarefa oracular. Recorro aos ditos populares: ela não dorme, não conhece pai nem mãe – só a verdade. É preciso ser paciente: ela tarda, mas não falha ( se ela tarda, não falha?!). Diz-se que seu braço é comprido e, para ser boa, começa em casa. Para alemães, quanto mais leis, menos justiça. Há quem afirme que, quando ela é extremada, extrema é a injustiça – talvez por isso quem a aplica, deve temê-la. A prudente sabedoria de Gandhi salva-me da confusão conceitual “Se ages contra a justiça e eu te deixo agir, então a injustiça é minha”.

Melhor é voltar ao “sentimento” de justiça. Preciso senti-la para garantir sua prática. É difícil: muitas vezes, o direito, instrumento de justiça para a conquista da paz, deixa de proteger a dignidade humana. Esse direito ilegítimo esconde o egoísmo dos que não se envergonham de manipular para obtenção de privilégios pessoais. São históricas a arrogância e a insensibilidade dos que se alinham com o poderio econômico, militar ou político. Surpreende, embora relativamente comum, a atitude dos pouco favorecidos que se destacam na escalada social, esquecem-se da origem humilde e debandam para o lado dos dominadores. É esforço quixotesco lutar por justiça?

Acredito que não: mais do que direito, é nosso dever contribuir para a construção de uma sociedade igualitária e justa. É preciso democratizar a organização social e valorizar o ser humano. Devemos exercer nossos direitos com fraternidade, estendendo a mão solidária aos que esperam o dia da libertação. Justiça é inerente à condição humana. Não é preciso ser doutor em leis para refletir, exercer e clamar por ela.

A justiça é cega, não nós.

Há que vivenciá-la de olhos bem abertos.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 21/03/2008
Reeditado em 23/03/2008
Código do texto: T910587
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