Revolução musical
Michael Jackson teria descoberto há tempos a batida perfeita tão procurada pelo nosso querido Marcelo D2.
“O simples bater de asas de uma borboleta pode causar um furacão no outro lado do mundo.”
(Teoria do Caos)
Quando Bob Dylan deu maconha para os Beatles não sabia que estava iniciando a maior revolução musical da história. De um lado estava o compositor de canções folk de protesto, engajado. Do outro, quatro jovens ingleses bobos que nunca haviam pensado em música como uma forma de arte, ou protesto, ou algo que fosse mais do que simplesmente música, propriamente dita. Pois é. Ali, naquele ato, naquele baseado estavam todos os anseios e medos, certezas, visões de mundo, fúria intelectual e “dilemas” de Dylan. Então, profundamente influenciados por aquele encontro com o intelectual músico americano, os rapazes de Liverpool, a partir daquele momento, apontaram para um novo rumo em sua trajetória de banda de rock, tratando com mais carinho, ternura, percepção, receptividade cultural – e sarcasmo – seu trabalho, logo lançado ao status de obra revolucionária – que foi. Dado isso, o, já revolucionário, rock’n’roll ganhava gás. E, muito mais do que gás novo, semeava-se ali uma brisa que viria desencadear um turbilhão de eventos. Um furação de cultura renovada e renovadora. A música começava então a transmutar-se numa avalanche ininterrupta de metamorfoses. Ela transformou-se em arte pop. Ela solidificou-se como instrumento de panfletagem ideológica (no bom sentido: vide Woodstock, os efeitos sobre e sob oVietnã, as ‘canções de protesto’ produzidas no Brasil nos anos 70, etc, etc, etc). Arte. Engajamento. A música deixara definitivamente de ser “apenas” música.
Das metamorfoses vindouras, poucos foram tão emblemáticos quanto Michael Jackson. A mais famosa criança cantora de todos os tempos deu seu grito de independência, já rapaz, quando lançou, em 1979, o disco “Off The Wall” – que é um dos melhores discos pop da história. Um trabalho desbravador. Michael passa de menino prodígio a melhor representante da música negra americana, firmando-se como seu grande ícone. Off The Wall é primoroso. É maravilhoso. Mas faltava algo. Jackson era ainda um cantor negro, e não simplesmente um cantor. Nos Estados Unidos um cantor negro era “um cantor negro”. Não importa Chucky Berry: Elvis é que foi o “rei do rock”. Não importava Nat king Cole: Frank Sinatra, com seus olhos azuis, era “The Voice”. Então, nos anos 70, por mais que Stevie Wonder fosse genial, os Bee Gees foram mais populares.
Acontece que uma revolução silenciosa ocorria na aurora da década de 1980. Embora – o branco – Christofer Cross abrisse as portas da década anunciando um possível porvir, Michael, na surdina, escondidinho dentro de um estúdio, gravava sua obra-prima, “Thriller”, que agora completa 25 anos.
Mas por que motivo Thriller é tão importante? Em primeiro lugar pelas músicas em si: neste disco estão “Billie Jean”, “Beat it”, “Human nature”, além da faixa-título. E há vários outros fatores que fazem de Thriller “o álbum “. Ele é tão bem gravado que ainda que seja ouvido num radinho de pilha na Índia ou no sertão nordestino a sonoridade se mantém boa, dado ao extraordinário equilíbrio entre os instrumentos. E ainda, foi naquele momento histórico para a música pop, que as barreiras entre música negra e branca começaram finalmente a ser quebradas, sendo Michael o primeiro grande ídolo negro da história americana no campo artístico a ser verdadeiramente prestigiado pela população branca. E o disco é essencialmente negro. As concessões a isso são as participações de Edie Van Hallen, que faz o melhor solo de guitarra de sua vida em “Beat it”, e Paul McCartney, com quem Michael divide a belíssima “The girl is mine”. Essas participações não tiraram a negritude do trabalho, entretanto, colaboraram, certamente, para a quebra de barreiras mercadológicas. Afinal, um guitarrista de heavy metal e um “beatle” num disco “negro” foram um tiro fatal no apartheid musical estadunidense.
A imagem peculiar de Michael, com seu figurino, seu gestual e sua dança desconcertante, foram, obviamente, determinantes para o sucesso da coisa. Isso sem falar na MTV. Thriller, o álbum, e posteriormente, o histórico clip de 15 minutos, foram concebidos pouco tempo após o nascimento da influente emissora musical. Michael está para o vídeo clip, assim como Shakespeare está para a invenção da imprensa: foram pessoas certas na hora e no lugar certo – aliás, como sempre ocorre com os grandes ícones, que sempre se beneficiam das circunstâncias. O que seria, afinal, de Shakespeare sem o invento de Guttemberg?
Um filósofo disse – creio que acertadamente – que a perfeição não existe. Para muitos fãs, Michael esteve bem próximo disso – musicalmente, deixemos claro – naquele começo da década de 80, com seu grande disco. Aquela surpreendente fusão de música eletrônica, soul music e funk, e sons de guitarra, além de magistrais arranjos de cordas, tudo guiado sob a batuta de Quincy Jones – o arranjador com quem, para muitos, deve-se dividir os créditos de Thriller –, encantou os ouvidos do mundo, influenciando toda uma geração de músicos e produtores. E mais. Além de ajudar a quebrar preconceitos raciais que separavam, mais do que se vê hoje, brancos e negros no mercado musical, ele potencializou a música de origem negra, dando voz ao rap, e ao hip-hop em geral. Muitos podem não conseguir fazer a conexão, mas os nossos O Rappa e Marcelo D2 devem muito, e talvez não saibam o quanto, a Michael Jackson.
Quando penso em “Billie Jean”, e quando ouço “Billie Jean” eu quase me emociono. Todo o andamento desta canção, o arranjo perfeito, a linda e triste melodia, a atmosfera misteriosa que ela traz. Nesses instantes quase tenho a ilusão da perfeição atingida em forma de música: talvez a batida perfeita que o meu querido D2, cá no hemisfério sul, está procurando até hoje.
Diante de tudo o que vimos na historiografia musical do século XX, não poderemos nunca mais subestimar um cara esquisito trancafiado em um estúdio musical: ele pode estar concebendo um furacão.
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Revolucionários na estética musical
(uma lista com graves omissões – como são todas as listas):
Irwin Berlin, Cole Porter, Chucky Berry, Charlie Parker, John Coltrane, Miles Davis, Elvis Presley, Bob Dylan, Jimi Hendrix, The Beatles, James Brown, Luiz Gonzaga, Bob Marley, Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Raul Seixas, Zé Ramalho, Stevie Wonder, Michael Jackson, Chico Science, O Rappa e, (tá bom) Marcelo D2.