A lua e os urubus

Conforme já falei aqui, a praia de Garopaba é cheia de urubus, que convivem pacifica e ordeiramente com os martim-pescadores e as gaivotas, cada um respeitando seus espaços. Como a cidade é o superlativo de uma antiga vila de pescadores, a tradição é mantida e a pesca artesanal é um dos pontos altos da economia nativa.

Como a maioria dos turista opta pelo filé de peixe, ali mesmo, no costado do barco os pescadores fazem a manipulação do pescado, deixando na areia as vísceras, o espinhaço, o rabo e a cabeça dos peixes, sejam eles pescada, garoupa, tainha ou linguado.

À primeira vista parece falta de higiene, mas por volta do meio dia quase que não tem mais dessas carcaças, pois os urubus já fizeram a depuração natural, comendo ou carregando aqueles despojos, limpando a praia. Por isso, ao lado das gaivotas que embelezam, os nativos respeitam os urubus, que fazem como que uma ascese natural da praia.

Neste ano, a Prefeitura resolveu, mais uma vez, fazer um calçadão. Disse “mais uma vez” pois quase todos os anos há essa tentativa, só que a melhoria é tão malfeita, que à primeira chuvarada ou pelo ímpeto de algumas ondas mais avançadas, tem ido tudo abaixo. Mesmo assim, o atual calçamento, feito pela “progressista” e teimosa engenharia nativa, não deve ir muito longe, porque repete os mesmos vícios dos anteriores.

O projeto está bonito e prático, até que uma previsível intempérie leve tudo águas abaixo outra vez. Eu já dei algumas dicas lógicas para eles otimizarem as calçadas. Mas, imaginem, aceitar sugestão de gaúcho, que nem engenheiro é.

Pois bem, numa noite dessas, fez uma lua como eu nunca tinha visto na minha p. vida. Era um descomunal disco de prata no céu, iluminando tanto que o quarto ficou claro, quase como dia, fazendo com que eu levantasse apressado, meio sobressaltado até, às três da manhã, e fosse olhar a causa daquela claridade. Com tanta luz, o céu ficou mais claro, as estrelas mais salientes e o mar cheio de rebrilhos, conferindo à madrugada uma atmosfera de encanto, como há muito eu não via. Lembrei Cheer e Nicolas Cage, em “O feitiço da lua”.

Recordo uma noite assim, há mais de dez anos, no Laranjal, em Pelotas, num sábado de aleluia... Como que chamado por um apelo invisível, saí à rua e fui caminhar no novo calçadão, para assistir àquele espetáculo, simbiose de luz, mar, brisa e beleza.

Não havia ninguém na rua. Só eu, um privilegiado espectador de uma noite de magia sem igual. Só eu, não, menti. Havia alguns urubus, talvez uma meia-dúzia, que animados pela inexistência de pessoas, deixavam de trilhar a faixa de areia para também desfrutar ousadamente do calçadão.

Estávamos ali, eu e os urubus, olhando a lua. Aqueles bichos pretos, em geral ariscos, andavam descontraídos, como que hipnotizados, pela beleza da noite. Era assim que eu me sentia, e imaginei nas aves, o mesmo sentimento.

Na vida, especialmente na sociopolítica é assim: os homens dormem e só os feios e malvados (os urubus) são beneficiados pela luz da lua. E fiquei pensando: “Quantas vezes, pela vida afora, objetiva ou figuradamente, por estarmos dormindo, os urubus têm desfrutado de nossas noites de lua?”

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 27/12/2005
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