HANNAH ARENDT LEITORA DE HOMERO: a antiga briga entre filosofia e poesia

“Todas as dores podem ser suportadas

se você as puser numa história ou

contar uma história sobre

elas." (Isak Dinesen)

Como adverte Hannah Arendt no consagrado “A Condição Humana” (1987):

“Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre conhecimento (no sentido de ‘Know-How’) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso ‘Know-How’, criaturas desprovidas de raciocínio, à merce de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja (...)” (Arendt 1987, p.11)

Deixando de lado estas por-enquanto-ainda-quase-incertas conseqüências, a filósofa alemã afirma que a situação criada pela razão instrumentalizada no mundo moderno reveste-se de significado político. Daí, então, Arendt advogar, em grande parte do seu espólio, a efetiva contribuição procedente do pensamento político dos antigos gregos, como um contraponto indispensável no debate sobre as perplexidades contemporâneas, as quais experienciamos (e de forma cada vez mais aceleradas!) no mundo hodierno.

Reconsiderar a condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos mais recentes temores; restaurar outras capacidades humanas camufladas por um mundo dirigido pela onipresente tecnocracia triunfante, sobretudo no que se relaciona à nossa atividade de pensar - consoante Arendt - que não se inclui nas atuais e urgentes questões que o mundo nos apresenta. “Refletir sobre o que estamos fazendo” - em tempos de rupturas do mundo moderno com a nossa tradição cultural - é, “grosso modo”, a preocupação central do projeto filosófico arendtiano.

De outra parte, o filósofo Cornelius Castoriadis (1987) toma, também, em seus estudos, os antigos gregos como paradigma para pensar o nosso presente, revelando, nesse aspecto da análise, algum parentesco com a reflexão arendtiana. Sobre a tradição cultural grega, Castoriadis assim se refere:

“A Grécia é o ‘locus’ social-histórico onde foram criadas a democracia e a filosofia e onde se encontram, por conseguinte, nossas próprias origens. Na medida em que o sentido e as potencialidades dessa criação não estejam esgotados - e estou profundamente convencido de que não o estão - a Grécia é para nós um ‘gérmen’: nem um ‘modelo’, nem um espécime entre outros, mas um ‘gérmen’.” (Castoriadis 1987, p.271)

Em seguida, noutra passagem, ainda segundo Castoriadis:

“Pensar não é sair da caverna[referência de Castoriadis à alegoria da caverna, de Platão] (...) é entrar no Labirinto (...). É perder-se em galerias que só existem porque as cavamos incansavelmente..." (Castoriadis:1987)

Com efeito, ao tentarmos pensar os dilemas do homem moderno em face da ruptura com a nossa tradição, e o imenso vazio no qual penetrou a cultura ocidental durante o século XX, pelos argumentos preliminares até agora aventados, podemos estar certos de que os estudos e as ricas e corajosas reflexões filosófico-políticas de ambos os filósofos - isto é, tanto de Hannah Arendt quanto de Cornelius Castoriadis - podem nos prestar incalculáveis auxílios no que se refere ao que bem propôs Arendt: “a refletir sobre o que estamos fazendo”.

Com isso, uma vez acordados com as linhas de pensamento de dois respeitáveis filósofos modernos, constatamos, então, que, quando eclode a crise de uma tradição vital - tal como a sociedade contemporânea experimenta -, é fundamental um retorno ao passado ou ao princípio - em sentido pleno = “ARKHÉ”, “princípio”, para antigos os gregos - , para que possamos alcançar uma visão mais ampla quanto ao trato das questões cruciais com que atualmente nos defrontamos. Afinal, demência, insensatez, intolerância, imprudência, loucura, dentre outros comportamentos - do gênero – do humano; são palavras que, desafortunadamente, se oferecem para caracterizar, em nossos tempos sombrios, o próprio princípio do mal.

Segundo Hannah Arendt, foi por conta desta circunstância, isto é, de uma humanidade destituída de seus valores, provocada pelo esfacelamento da nossa tradição cultural, que se deu, no século XX, a irrupção da manifestação mais violenta e radical de ruptura com o nosso passado: o fenômeno do totalitarismo - que se caracteriza como forma de governo assentada na organização burocrática das massas, baseada no terror e na ideologia, na dominação total, que decreta a morte da liberdade mediante a prática do genocídio, provando, dessa maneira, “não existirem limites à deformação da natureza humana”. Para este fenômeno, consoante Arendt, a tradição ocidental não tinha categorias de pensamento e nem respostas, pois “o totalitarismo apareceu tanto como um desdobramento da utopia capitalista, quanto da utopia socialista, conforme nos mostram as suas vertentes nazista e marxista”, de acordo com Celso Lafer ( 1979) em diálogo com a reflexão arendtiana.

Em seu consagrado ensaio sobre o totalitarismo intitulado “Origens do Totalitarismo”, publicado em 1951, a filósofa alemã (com o olhar analítico da cientista política que sempre foi) afirma que “a derrota da Alemanha nazista pôs fim a um capítulo da história” (Arendt: 1990). Em seguida, num tom de perplexidade, pergunta: “_ O que havia acontecido? _ Por que havia acontecido? _ Como pôde ter acontecido?”. Marcado pela urgência de compreender o fenômeno totalitário, Arendt – sempre a se autodenominar como uma apaixonada por política e não uma filósofa profissional - construiu sua obra para tentar pensar os dilemas do homem moderno, que experiencia o desespero no vazio da cultura do século XX, após a ruptura com a tradição do pensamento ocidental. Noutro notável estudo intitulado “Entre o passado e o futuro” (1972), Arendt constata que:

“A situação (...) tornou-se desesperadora quando se mostrou que as velhas questões metafísicas eram desprovidas de sentido; isto é, quando o homem moderno começou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade e sua tradição de pensamento não eram sequer capazes de formular questões adequadas e significativas, e, menos ainda, dar respostas às suas perplexidades.” (Arendt 1979, p.34-5)

Na presente etapa da modernidade científico-tecnológica, regida pela velocidade, elevando, com isso, a tecnologia a níveis destrutivos, Hannah Arendt, alinhavando sua criatividade reflexiva com as lições políticas de Immanuel Kant (Arendt foi exemplar leitora de Kant), preocupou-se, noutro registro, em indagar sobre “A Vida do Espírito” (1992) e suas faculdades correlatas: o pensar (a contemplação), o querer (a vontade) e o julgar (o juízo) . O referido estudo revela-se, acima de tudo, como um apelo ao pensamento, pois, para Arendt, a atividade do pensamento é a única que exige um afastamento do mundo das aparências, para que o “eu pensante” possa dialogar consigo mesmo. O ausentar-se do mundo é, então, pré-condição para o efetivo exercício das atividades do espírito. Contudo, das três faculdades espirituais, é a atividade do pensar que mais afasta o eu do mundo imediato, enfatiza Arendt:

“A experiência da atividade do pensamento é provavelmente a fonte original de nossa própria noção de espiritualidade, independentemente das formas que ela tenha assumido. Em termos psicológicos, umas das mais notáveis características do pensamento é sua incomparável ‘rapidez’ - ‘rápido como o pensamento’, disse Homero; (...). Naturalmente o pensamento é veloz porque é imaterial; e isso, por sua vez, acaba por explicar a hostilidade que tantos metafísicos tinham em relação a seus próprios corpos. Do ponto de vista do ego pensante, o corpo é apenas um obstáculo.” (Arendt 1992, p.35)

É do mundo de aparências que o eu pensante se ausenta quando pensa - privando-se da companhia dos homens, o pensamento é e deve ser uma atividade solitária: diálogo consigo próprio! Se no plano do conhecimento o eu procura verdades, então, a atividade do pensar dirigi o eu pensante a se perguntar sobre o significado das coisas. Nesse sentido, consoante Arendt, “o pensamento especulativo ao contrário do senso-comum, que se vale de exemplos, requer a metáfora” (apud Lafer: 1979). Valendo-nos mais uma vez das brilhantes observações de Celso Lafer, discípulo e intérprete do espólio arenditano no Brasil:

“Não é Platão, mas sim Adão, o pai da filosofia, como disse Walter Benjamin no prefácio à ‘Origem da Tragédia Alemã’, lembra Hannah Arendt no seu estudo sobre Benjamin ao apontar que, para ele, o nomear ilumina o dia da verdade. (...) Todos os grandes termos filosóficos são (...) metáforas, ou seja, analogias congeladas que estabelecem a ponte entre o mundo e a especulação. (...) Existe, diz Hannah Arendt, uma irreversibilidade na analogia que estrutura a metáfora filosófica. Ela resulta de que o eu pensante nunca deixa propriamente o mundo das aparências. A metáfora serve como ponto de vista para o não-visto do pensamento (...) Daí a primazia do mundo das aparências, pois é através da metáfora que a linguagem da mente ilumina o que não pode ser visto mas pode ser dito.” (Lafer 1979, p.87-9)

Nesse sentido, a linguagem, enquanto repertório da experiência humana, é “o único meio pelo qual é possível tornar manifestas as atividades espirituais” ( Arendt: 1992). Assim, “toda época assinalada pela problematização do seu passado tem que se confrontar com o fenômeno da linguagem, pois é na semântica da língua que o passado deita as suas indestrutíveis raízes...” (Lafer :1979). Ademais, se a linguagem do pensamento é essencialmente metafórica, então:

“A filosofia - é razoável admitir - foi à escola de Homero para imitar-lhe o exemplo. E a tendência para admitir isto é ainda mais reforçada pelas duas primeiras, mais famosas e influentes parábolas do pensamento: a viagem de Parmênides aos portões do dia e da noite e a parábola da caverna de Platão, sendo que a primeira é um poema e a segunda é essencialmente poética, impregnada pela linguagem homérica. Isso no mínimo sugere que Heidegger estava certo quando chamou a poesia e o pensamento de vizinhos próximos.”

(Arendt 1992, p.83 )

Como podemos constatar, Arendt, semelhante a outros pensadores do século XX, concede, em seus estudos, importância central à questão da linguagem. De outra parte, ao perceber que o fio da tradição se rompeu, Hannah Arendt volta-se para o passado, nutrindo, em seus escritos, um ideal de política como aquela praticada na pólis grega; fez, portanto, do mundo grego - que implica a dicotomia entre vida ativa e vida contemplativa - a medida para avaliar o mundo moderno.

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. “A condição humana”. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

____. “A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar”. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1992.

____. “Entre o passado e o futuro”. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.

____. “Origens do totalitarismo”. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

CASTORIADIS, Cornelius. “As encruzilhadas do labirinto”. 2 v(s). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

LAFER, Celso. “Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

PLATÃO. “A República”. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 5 ed. Lisboa: Fundação Calouste, 1987.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, verão de 2005