Quando a ética vai pro espaço

Ao definir éthos, os gregos ligavam o verbete a um “bom comportamento”, social, urbano e de harmônica convivência. Eu lecionei por quase 20 anos, “História da Filosofia”,

“Formação Social e Política”, “Filosofia da Ciência” e “História do Pensamento Econômico”, em mais de uma Universidade, além da docência teológica em cursos regulares e workshops, onde a ética, como “bom comportamento social”, volta-e-meia aparecia como núcleo essencial, o sitz im lebem dos filósofos alemães, a fim de ordenar um juízo a priori.

No fim da década de 90, as Igrejas, a sociedade civil e o mundo cultural decidiram abrir o debate sobre a ética. Foi um período, três ou quatro anos, de muito debate, encontros, congressos, abobrinhas teóricas, mas ficou tudo na mesma. Aliás, na mesma não: piorou. Nesta época escrevi duas obras sobre o tema: “Crise da Ética” (Ed. Vozes, hoje em 4a. edição) e “Ética cristã e compromisso político” (Ed. Ave-Maria).

O fato é que todos aqueles segmentos que preconizaram a superveniência da ética, em todos eles descobriu-se nichos obscuros, onde a própria foi para o espaço. Recordo que, uma entidade, do interior do estado, convidou-me para uma conferência sob ética. Disse-lhes que não podia, pois naquele período já tinha outro compromisso agendado. A interlocutora me disse: “mas não dá para ‘esfriar’ eles e vir aqui?”.

Um colégio religioso, de outro estado, me mandou convite para a “semana da ética”. Fui lá, e escutei, nas entrelinhas, a revolta dos pais, por conta de um aumento absurdo da mensalidade escolar. Abri meu discurso classificando como a-ético os aumentos abusivos de preços de produtos e serviços, inclusive meti o pau nas mensalidades escolares. Os mentores parece que não gostaram, pois nunca mais me convidaram.

No ano passado, correu pelos jornais nacionais a notícia de que um alto dignatário da Justiça do Rio de Janeiro havia pedido aposentadoria e que iria advogar. Até aí nada demais. Mas sabem quem é o cliente? Fernandinho Beira-Mar”. Ora, eu sei e vocês sabem que alguém tem que defender esse tipo de gente. No entanto sei, embora não seja advogado e mesmo que fosse, eu não teria estômago para tal, e que meu mínimo-ético não me permitira defender um indivíduo desse jaez, por dinheiro nenhum do mundo. Outro caso, mais antigo, aponta para duas proeminentes figuras da República. Uma delas declarou abertamente, que na Constituinte de 1988 incluiu itens “fora de pauta” que entraram na Carta Magna. Confessou, passou por malandro, e não aconteceu nada.

O outro, também um figurão, foi o advogado dos marginaizinhos de Brasília que incendiaram e mataram o índio pataxó. Quando as pessoas fazem qualquer coisa por dinheiro, de fato, a ética vai pro espaço. Sabe-se que é profissão, mas a ética coloca à disposição das pessoas uma palavra chamada “não” capaz de balizar a dignidade humana.

Em meu livro “Bioética, a ética em defesa da vida” (Ed. Santuário, 2004) eu falo na ética médica, nos erros que ocorrem nos hospitais, nas “mancadas” cirúrgicas, no comércio de órgãos e em algumas “pesquisas” que ocorrem. O problema é que a crise da ética está tão instalada em todos o segmentos nacionais, a partir dos Poderes da República (TRT de São Paulo, etc.), e em especial, privilegiadamente em 2005, no Congresso Nacional, que as coisas passam a parecer normais.

A ética funciona num sistema de espirais concêntricas, onde o caráter e o exemplo são a tônica. Ora, como pedir que um garoto seja honesto na hora da prova escolar, se o político –mesmo sem generalizar – há muito deixou de ser? Ou, com que moral a sociedade pode condenar um faminto que rouba uma galinha, se um homem público faz coisas piores?

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 22/12/2005
Código do texto: T89351