Evasão na Educação Infantil: desvalorização
Esse artigo parte da síntese das observações e reflexões sobre a Educação Infantil na Escola Municipal Abrigo dos Filhos do Povo durante as vivências com as crianças, seus pais e professores, no Projeto Nenhum a Menos. Trabalhando com as crianças infrequentes da pré-escola constatamos que na visão de alguns dos atores educacionais, a Educação Infantil é tida como um divertimento e a sala da pré-escola é o local das crianças brincarem sem o menor comprometimento. Segundo Piaget a pré-escola não pode ser vista como um passatempo, e sim um espaço criativo, que permite a diversificação e ampliação das experiências infantis, valorizando a inventividade da criança e promovendo a sua autonomia ( ASSIS,2004).
Dentre as atividades do Projeto inclue-se diálogo com as famílias dos alunos infrequentes. Com base nessas conversas discernirmos que esses pais davam pouca ou nenhuma importância à Educação Infantil, à título de exemplo, certa mãe queria transferir seu filho para uma escola mais próxima, não podia transferi-lo no ano corrente, então decidiu não levá-lo mais para a escola já que o garoto cursava o pré 2 e essa série não tem muita importância. A infrequência nas turmas do pré é maior do que nas outras e as crianças do CEB I, na sua maioria, não são alfabetizadas nem letradas. Esse mesmo pensamento está presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que estabelece a que a Educação Infantil deve ser oferecida pela rede pública e pela rede particular, mas cabe ao município oferecê-la, porém sua prioridade é oferecer o Ensino Fundamental (LDB,Art.11, inciso V). Assim a Educação Infantil fica em segundo plano, como se fosse um nível de ensino de menor relevância ou até mesmo desnecessário. Diante desses fatos a impressão é que a Educação Infantil é relegada por grande parte dos atores envolvidos.
A Instituição de Educação Infantil é um espaço cultural resultante da ação humana histórica sobre o meio físico. È um espaço artificial-natural. Artificial na medida em que foi criado pelo homem ao longo do seu desenvolvimento histórico. Tornou-se natural, quando gradativamente passou a fazer parte integrante da vida social humana (OLIVEIRA, 1995,p.46). Espaço de relações e de trabalho que envolve aspectos técnicos, administrativos, filosóficos e metodológicos.
De acordo com Vygotsky as características humanas não estão presentes desde o nascimento do indivíduo nem são meros resultados das pressões do meio externo. Elas resultam da interação dialética do homem e o seu meio sócio-cultural. As relações psicológicas especificamente humanas se originam nas relações do indivíduo e seu contexto cultural e social. A aprendizagem e o desenvolvimento estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida do indivíduo( VYGOTSKY,1989).
A Educação Infantil não se restringe apenas para a preparação para o Ensino Fundamental, ela deve favorecer a construção do desenvolvimento moral, deve respeitar a curiosidade da criança, levando-a à refletir sobre as perguntas que faz. A Educação Infantil precisa visar o desenvolvimento da criança em todas as suas dimensões: física, socioeconômica, intelectual e afetiva; ela não pode estar comprometida através dos seus propósitos e objetivos, com a situação de sucesso ou insucesso escolar de seus alunos em outros níveis de seu processo se escolarização(ASSIS,1999).
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Artigo 29:
“A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”.
Segundo Wallon, a Educação Infantil ideal, atende as necessidades da criança nos planos afetivo, cognitivo e motor e, promove o seu desenvolvimento em todas esses níveis. A Educação Infantil é um meio para uma meta maior do desenvolvimento da pessoa, afinal, a inteligência tem status de parte no constituído pela pessoa. A dimensão estética da realidade é valorizada e a expressividade do sujeito ocupa lugar de destaque.
A escola deve favorecer o movimento de exteriorização do eu , o que pode ser propiciado por atividades no campo da arte, campo esse que favorece a expressão de estados e vivências subjetivas. Visando a auto construção do sujeito a escola deve estimular o duplo movimento(expulsão e incorporação), o que implica oferecer oportunidades de aquisição e expressão, nas quais se alterne a predominância das dimensões objetiva e subjetiva. Em termos curriculares essa busca reflete na integração entre arte e ciência (GALVÃO,1995).
No meio físico e social a atividade infantil encontra as alternativas de sua realização, o saber escolar não pode se isolar desse meio, mas, sim, nutrir-se das possibilidades que ele oferece. O grupo (que faz parte do meio) se insinua quando a criança começa a perceber a diferenciação entre si mesma e as pessoas do seu meio, no momento em que simbiose afetiva e sincretismo subjetivo começam a diminuir (por volta dos 3 anos de idade).
No período entre 3 e 5 anos de idade, que Wallon chama de "período maternal", será preparada a emancipação futura da criança. A educação deve atender simultaneamente á formação do indivíduo e da sociedade. A pedagogia walloniana propunha o atendimento simultâneo das aptidões individuais e das necessidades sociais baseado nas idéias de que o aproveitamento mais adequado das competências de cada um se dá em benefício do indivíduo e da sociedade, assim como a melhor distribuição das tarefas sociais serve ao interesse coletivo e a realização individual (MAHONEY e ALMEIDA, 2004).
De acordo com o Referencial Curricular para Educação Infantil, ela deve primar pela qualidade das interações, considerar as diversidades culturais, sociais e ambientais para que a criança possa construir uma identidade autônoma e desenvolver todas as habilidades para uma vida social. È exatamente na Educação Infantil que as crianças iniciam seu processo de (des)(re)construção de conhecimentos.
O PNE completa esta discussão afirmando que a Educação Infantil:
“é a primeira etapa da Educação Básica. Ela estabelece as bases da personalidade humana, da inteligência, da vida emocional, da socialização. As primeiras experiências da vida são as que marcam mais profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem a reforçar ao longo da vida, as atitudes de autoconfiança, de cooperação, solidariedade, responsabilidade (PNE, p.46)”
Por essa razão descuidar da infância significa desperdiçar um imenso potencial humano já que é nessa época que a inteligência se forma. Para orientar uma prática pedagógica condizente com os dados das ciências e mais respeitosa possível do processo unitário de desenvolvimento da criança, constitui diretriz importante a superação das dicotomias creche/pré-escola, assistencialismo/educação, atendimento a carentes/educação para classe média e outras, que orientações políticas e práticas sociais equivocadas foram produzindo ao longo da história(p.49).
Em concordância com o PNE está o ponto de vista de Sônia Kramer:
“A Educação Infantil precisa privilegiar os fatores sociais e culturais, entendendo-os como os mais relevantes para o processo educativo. A meta básica é implementar uma pré-escola de qualidade, que reconheça e valorize as diferenças existentes entre as crianças e, dessa forma , beneficie a todas no que diz respeito ao desenvolvimento e à construção dos seus conhecimentos. A construção da autonomia e da cooperação, o enfrentamento e a solução de problemas, a responsabilidade, a criatividade, a formação do autoconceito estável e positivo, a comunicação e a expressão em todas as formas, particularmente ao nível da linguagem... A pré-escola deve contribuir para a inserção da criança de forma crítica e criativa na sociedade. Para tanto, é essencial que possam adquirir os conhecimentos exigidos no 1°grau de forma dinâmica e viva, participando desse processo que, afinal, é o processo de construção de sua cidadania (KRAMER, 1999).
A Educação Infantil de qualidade pode refletir de forma positiva no desempenho das crianças nas séries iniciais do Ensino Fundamental nas escolas públicas. O alto índice de repetência nessas séries tem como um dos principais motivos o fato de que muitas dessas crianças não são preparadas para ler e escrever, ou seja, não têm contato com materiais que auxiliarão no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Essa necessidade poderia ser suprida pela Educação Infantil de qualidade que, dentre muitos outros benefícios, favorece a alfabetização(LUCON, 2007).
A Educação Infantil abrange os períodos denominados por Piaget como Sensório- motor(0 a 2 anos) e Pré-operatório(2 a 7 anos). No estágio sensório-motor, a criança constrói esquemas de ação. Ainda não há pensamento lógico, representação nem linguagem, é por meio dos sentidos que ela conhece o mundo (PIAGET, 1987). Nesse sentido, a Educação Infantil entra como uma grande ajuda para o desenvolvimento cognitivo nessa fase. Através das brincadeiras, dos jogos e das atividades manuais e que envolvem o movimento. Movimento e atividade intelectual têm uma relação de reciprocidade (WALLON apud GALVÃO, 1995).
No estágio pré-operatório a criança desenvolve esquemas de representação, ou seja, constrói as representações que levará para o resto da sua vida: escola, família, sociedade etc. A linguagem também se desenvolve nessa fase. A Educação Infantil que visa o desenvolvimento integral da criança, vai promover uma melhor interiorização dessas representações., possibilitando ao aluno uma visão de mundo mais ampla, uma melhor qualidade de interações com o outro e com o mundo físico. O que estimulará o desenvolvimento da linguagem e a qualidade das trocas simbólicas.
Além do seu caráter pedagógico a Educação Infantil é fundamentalmente política e social. Porque a socialização, dentre os maiores, é um seus dos papeis. Antes de discutirmos essa faceta primeiro vamos refletir sobre a concepção de socialização.
Socialização é
“um processo de iniciação por meio da qual a criança pode desenvolver-se e expandir a fim de ingressar num mundo que está a seu alcance ; a socialização constitui parte essencial do processo de humanização integral e plena realização do potencial do indivíduo?, portanto, é um processo de iniciação no mundo social, em suas formas de interação e nos numerosos significados”.(BERGER,1999).
Exatamente nesse contexto que entra a Educação Infantil. Ao possibilitar essas interações, age como um agente socializador.
Dessa forma, podemos afirmar que por detrás existe uma questão social. Essa desvalorização observada é um dos frutos da desigualdade social. Segundo Bourdieu, as atitudes dos membros das diferentes classes sociais, pais ou criança, e muito particularmente , as atitudes á respeito da escola, da cultura escolar e do futuro oferecido pelos estudos são, em grande parte, a expressão do sistema de valores implícitos ou explícitos que eles devem à sua posição social (BOURDIEU, 2004).
“De maneira geral, as crianças e sua família se orientam sempre em referência às forças que as determinam. Até mesmo quando escolhas lhes parecem obedecer à inspiração irredutível do gosto ou da vocação, elas traem a ação transfigurada das condições objetivas” ( BOURDIEU, 2004, p.329).
A herança cultural influencia o modo de encarar a Educação Infantil,
“aquilo que a criança herda de um meio cultivado não é somente uma cultura (no sentido objetivo), mas um certo estilo de relação com a cultura que provém precisamente do modo de aquisição dessa cultura”(BOURDIEU, 2004, p. 330).
A idéia de que a Educação Infantil é um passatempo é transmitida culturalmente de uma geração para a outra. A família por meios diretos e indiretos, transmite aos pequenos certo capital cultural e certo "ethos", sistema de valores que contribuem para definir as atitudes face ao capital cultural e a instituição escolar.
Nesse contexto, percebemos que há uma reprodução social. A concepção de: filho de pobre não precisa cursar a pré-escola, é transmitida tanto pela família como pela escola e principalmente a sociedade que, diga-se de passagem, ambas tem grande responsabilidade na perpetuação das desigualdades sociais.
“A igualdade formal que pauta a prática pedagógica serve como máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida” ( BOURDIEU, 2004, p.336).
Concluindo, faço uso das palavras de Bourdieu:
“Somos levados , então a reconhecer a 'rigidez' extrema de uma ordem social que autoriza as classes sociais mais favorecidas a monopolizar a utilização da instituição escolar, detentora, como diz Max Weber, do monopólio da manipulação dos bens culturais e dos signos institucionais da salvação cultural” ( BORDIEU, 2004, p. 347).
Portanto, a desvalorização da Educação Infantil é mais que uma questão pedagógica, é fundamentalmente política e social. Precisamos refletir para quem realmente interessa a exclusão das crianças de baixa renda da Educação Infantil de qualidade, devido à sua importância para o desenvolvimento das habilidades intelectuais e físicas das crianças.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Orly Z.M. de e ASSIS, Mércio C. de. PROEPE: Fundamentos Teóricos. 2º ed, São Paulo: UNICAMP/FE/LPG,1999;
BERGER, Peter e Brigitte. Socialização: como ser um membro da sociedade. In FORACCHI, Marialice M. e MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade: Leituras de introdução à sociologia. São Paulo: LTC.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. 6º ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2004.
BRASIL, LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL;
BRASIL, PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO;
BRASIL, REFERENCIAL CURRICULAR PARA EDUCAÇÃO INFANTIL;
LUCON, Cristina. A Educação Infantil brasileira. Texto elaborado para a disciplina EDC 290- Educação Infantil. FACED/UFBA, 2007.
OLIVEIRA, Zilma M. Ramos de. Educação Infantil: muitos olhares. 2º ed. São Paulo: Cortez, 1995.
KRAMER, Sônia. Com a pré-escola nas mãos. São Paulo: Àtica,1999, Cap.I;
GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Petropólis,RJ:Vozes,1995(Educação e conhecimento);
MAHONEY, Abigail A. e ALMEIDA, Laurindo R. Henri Wallon: Psicologia e Educação. 4º ed, São Paulo: Loyola, 2004;
PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência na criança. 4º ed. Rio de Janeiro: Guanabara, c1987.
SILVA, Luís Carlos Café da. Práticas pedagógicas do pré-escola e suas relações com o mundo funcional da realidade. Tese de mestrado. Salvador: UFBA, FACED, 1996.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.