A mentira no mito
Entre o que se quer deles e aquilo que são, uma distância enorme ilude os crédulos e desencoraja os desconfiados. Quase por regra, vê-se depois que os mitos mentem. Mas com freqüência, tão depois, que a crença é levada ao túmulo, tornando-se irrefutável.
Sobra para póstumas gerações o trabalho de limpar o terreno, exibir o erro e as conseqüências da infertilidade mítica. Porque o mito é infértil até a mentira nele contida vir a ser aceita como tal – e do erro reconhecido brote a remissão de uma ilusão que se desfaz.
Quanto maior o tempo de uso, mais dolorosa a desintoxicação. O mito é uma droga cuja ação prolongada provoca extenso dano social. Dano causado pelo fato de que o mito se compartilha, embora a cegueira que o fortaleça pareça o fruto de fé ou escolha individual. O mito é como um pão que não existe, e se divide. Sem dúvida, o milagre dos mitos é o alimento mítico.
Se o que vem a ser importante termina surgindo apesar de algo que lhe barra a passagem, como pregava Nietzsche, podemos dizer que a realidade muda apesar dos mitos. Pode até demorar, mas a verdade toma o lugar da mentira. O imutável desmorona, o falso se esfacela, consumidos pelo tempo – seja a hipótese científica, seja a visão histórica sustentadas desta forma.
A resistência da mítica mentira aglutina os incautos ao mesmo instante em que abre a janela do próprio fim. A irradiação que vem do mito é de luz seca, opaca. Escuridão irradiante. Por natureza, o mito é obscuro, pois é daí, da obscuridade, que extrai seu enganoso brilho.
O mito é totalitário de origem, mas os mitômanos não enxergam nada além do messiânico lustre. Assim, à perfeição de um círculo, o mito é iluminado pela luz a emanar dele mesmo. E qualquer lume de outra fonte é rechaçado, como se fosse irreal o mundo que não sai do mito.
A renúncia do comandante Fidel Castro por esgotamento físico, na ilha de Cuba, dá oportunidade para a revisão do mito castrista com o seu fundador ainda vivo, quase meio século depois da revolução que, sem saber, trocou um ditador por outro.
Tocado pela mitologia revolucionária, o presidente Lula disse que “o grande mito continua. Fidel é o único mito vivo na história da humanidade”. À medida em que descemos a escala do lulismo, a homenagem dá vez ao realismo. Para o vice, José de Alencar, a saída oficial representa “o fim de um tempo”. Tarso Genro crê na “renovação política e institucional” de Cuba, puxada por uma pressão democrática mundial.
A expectativa geral é de relaxamento do regime com a renúncia do líder carismático. O deputado Fernando Gabeira aponta o fim próximo do mito cubano: “Uma coisa é certa: a mudança virá”, aposta Gabeira.
Vencido pela idade e isolado no planeta, o “grande mito” de Cuba é a prova viva da mentira nos mitos. É por isso que a mudança se impõe, que um tempo chega ao seu termo – contra a vontade de adoradores de ídolos ou daqueles que alugam e exploram em seu proveito o equívoco da verdade mítica.