A insustentável leveza ...

Os professores vivem dias de desencanto...! Nem vale a pena falar nisso. Parece não haver quem nos valha. Vamos enganando a frustração com ilusões, coisas vãs. Há quem diga "Carpe Diem". O que será, será. O que vale são os amigos, etc. E é aqui que eu penso nos "meus amigos".

Parece que tudo passa por eles. Confirmo. No entanto, quem são os meus amigos? São as personagens que vivem nos meus livros. Só elas têm substância. Por momentos tentei encontrar pessoas mesmo, enfim, pessoas, sabem como é, aquelas criaturas, como eu, que deambulam ao sabor da vida. Depressa me cansei. Cansaço mesmo! Não suportei a imensa banalidade! Pior, fui forçada a olhar para mim como pessoa e encontrei um ser entediado, impaciente, em processo delirante de embrutecimento irreversível. Afastei-me. Voltei ao meu eu de sempre. Acolhi-me nos braços dos meus livros. Sosseguei. Não voltei a ter novas da minha pessoa.

Um certo pudor faz-me refrear a vontade de falar dos amigos que cirandam pela minha casa e dormem, à noite, nas minhas estantes. Porém, não sou só eu que sinto assim. Recentemente, encontrei o seguinte num ensaio de Steiner:

«Ninguém tem a noção cabal da génese de uma personagem de ficção nascida do espírito do escritor e do raspar da pena no papel. E, no entanto, essa personagem está prestes a adquirir uma força de vida, um poder sobre o tempo e sobre o esquecimento muito superiores aos de qualquer indivíduo. (...) Na agonia, Balzac clamava pelos médicos que tinha inventado na "Comédia Humana". Segundo Shelley, um homem apaixonado pela "Antígona" de Sófocles jamais poderia viver uma experiência semelhante com uma mulher real. »

Como eu os compreendo. Gosto tanto de falar com Ravelstein. Ele tem sempre uma palavra desconcertante para me dar. Aflige-me a morte de Edith. Quando a vi junto às escadas, ainda lhe gritei: "Tem cuidado, podes cair." Mas enfim, se me concentrar nas páginas anteriores à sua morte, posso sempre falar com ela e ver como sou feliz, por comparação. Em relação ao amor, não esquecerei nunca Maximillian de Winter, o homem misterioso, habitante da casa "Manderley", rodeada de redondendros e entalada entre a serra e o mar. Há sítio melhor para se estar, para se viver com o nosso amor?

De volta à realidade, verifico, pela enésima vez, a insustentável leveza, a insubstância de tudo. Por isso, em trânsito pelo dia, ando em fuga, em correria, tenho em mente, apenas, o momento redentor do regresso à ficção. O meu momento de glória é sempre aquele em que, ao chegar a casa e ao trancar a porta, aprisiono o real do outro lado.

Nota: STEINER, George, "O Silêncio dos Livros", Gradiva, Lisboa, 2005. pp 46, 47