A POESIA ABAPORU* : REVISITANDO OSWALD DE ANDRADE

O que é a Poesia Pau-Brasil? Onde se esconde a realidade mitopoética de ser brasileiro, de fazer-se brasileiro? Na antropofagia cotidiana dos atos de auto-afirmação social? Nos fatos! Pois, a poesia forja a sua existência pueril e a antropofagia é a expressão singular dessa relação do povo brasileiro com a sua subjetividade; o português, branco, mouro, devora a essência do nativo “iletrado”, e o transfigura num fenômeno estético, simbólico e pitoresco.

Os Manifestos da Poesia Pau-Brasil e Antropofagia de Oswald de Andrade**, revelam passagens históricas de uma trajetória que retrata um presente subjetivo das relações de poder existentes no cotidiano. A essência natural da raça nativa indígena, a miscigenação africana e a pluralidade de uma cultura de branqueamento. Cultura pau-brasil! Esteticamente maquiada e filosoficamente elaborada, se despe ou é despida da sua caótica realidade e transgride... salta do cotidiano e reina nas ‘passarelas dos sambódromos’ e a linha demarcatória entre o público e o privado se desmancha na avenida.

As ilusões são o mais belo esboço de uma realidade apartada da dignidade. E sobre isto temos os cenários da colonização exploratória, revisitados por Oswald de Andrade: o impacto com a originalidade e a liberdade do nativo, a intencionalidade do colonizador, a visão preconcebida de uma cultura erudita, a inversão de valores num ato simbólico de antropofagia, o etnocentrismo e a aculturação paulatina, os academicismos científicos e a prática da democratização estética, o monoteísmo religioso e a assunção do poder pelo clero e donos de terra.

Uma sociedade edificada em castas, livre, preguiçosa, sensual e hospitaleira. A alegria Pau-Brasil! Cenários ricos, polêmicos podem ser percebidos através das relações simbólicas que alimentamos no inconsciente arquetípico, sem questionamentos. Crédulos da suposta miséria social, econômica, ética, espiritual e cultural do nosso povo - negro, índio, mulato, pobre, desdentado, submersos nos vocábulos de uma língua extinta, recriada, adaptada, escravizada, criacionista, antropofágica – vosmicê, você, ocê, cê...

E assim, percebe-se o entorpecimento dos sentidos ante os estímulos eruditos da “beleza clássica”, européia, retratada e exaltada ao extremo como padrão ideal a ser copiado, assimilado e valorizado. É a sina reduzida ao colonizado? Ser aculturado, mistificado, antropofagicamente amalgamado pela fome ruminante e insaciável de seus opressores que anseiam ... necessitam decifrar o indecifrável de uma cultura não cristã e criativa; expurgar-lhes os ritos, os credos, os mitos e deuses a fim de simplificar sua dinâmica dualista e dessa forma apoderar-se de sua sensualidade natural, autoerótica e poética: o belo em sua singela crueza, carne e espírito na dança com o cosmo criador!

Podemos filosofar “ad infinitum”, embalados nos braços totêmicos de um passado revelador, vivenciado por práticas que salivam ao ver carne nova e paradigmática apontando nos horizontes desconhecidos de um mundo em potencial transmutação; um “Outro” que chega, aporta, invade, seduz... um mundo revestido de idéias extremistas, positivistas e contraditoriamente maniqueístas. Os ‘doutores da palavra’, das ciências, se fizeram reais! O opressor? Os donos de engenhos, os escravagistas, os religiosos... os diplomados, ou não, (a) cultos, enfim, outorgaram para si a certificação de direito, no falar, no morar, no agir – a casa e a rua em seus espaços simbolizados por poder e direito; valores importados e valores exportados, expurgados!

A poesia dos que reinam, governam e daqueles que são os plebeus da história, súditos dóceis que se submetem – suas verdades, sua história secular das selvas, dos guetos. E nas entrelinhas podemos ler, na atualidade, os atos simbólicos de uma apologia à valorização da “cultura mater”. Sua manifestação destituída de conscientização política e sim através do sensacionalismo grotesco e dos espetáculos ingênuos, muito bem maquiados e estabilizados pelos extremos – destituídos de alma e poesia!

Um joguete de máscaras e aparências que vem à tona quando se reelaboram os rituais e a vida real irrompe. Insurgindo das pseudoleituras e dos engodos coletivos que não resistem às contradições; o negro que é mulato, moreno, achocolatado, marrom; o índio, ser invisível ou o que os olhos queiram “ler”, pois, não aprenderam a interpretar o novo chão que os pés há muitos séculos pisam.

Do lado de lá... o nascimento de um Brasil “doutor de si”? Mecanicista em sua expressão, reducionista no olhar, de espírito invencionista encarcerado pelos teoremas, fórmulas e leis escatológicas de um universo fragmentado, seriado e catalogado. Do lado de cá... um mundo livre em sua expressão, no exercício fiel das possibilidades; direito adquirido pela compreensão ou seria vivência? Pela experimentação cosmogônica do seu lugar na existência humana e primeva.

O lugar no mundo! Um mundo com leis morais e éticas que atendiam perfeitamente às polaridades sem, no entanto, exceder na dualidade maniqueísta, pois a dinâmica dessa dualidade atendia às demandas da natureza de suas relações tribais. Os Caraíbas devoradores de homens e os homens que praticam a antropofagia dos valores culturais de uma civilização. Como perceber as bases cristãs ou éticas? Um simples sofisma que poderá ser mil vezes repetido e se tornará verdade incólume!

Somos nós... a sociedade civilizada e o resultado de atos antropofágicos do ideário capitalista, que absorve o opositor, o inimigo inconsciente e transforma-o em totem. Num ato canibalista que mimetiza uma cultura do ter, consome-a diariamente e universalizando-a, sacraliza a sua passagem numa demonstração de sobrevivência e no livre exercício da impermanência. Ou não?

Nesse processo exercitamos a temporalidade existencial... o passado, o presente, o futuro dançam poeticamente, se misturam entre bárbaros, crédulos, ateus; a vida lá fora em plena expressão nas matas verdejantes e a sobrevida aqui dentro, nos bancos escolares a reproduzirem pseudoverdades sobre a civilização planetária.

É a raça Pau-Brasil e a poesia vermelha devoradora de homens e de significados!

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* Abaporu ou Abapuru significa, na língua tupi “homem que come”. É uma das obras de Tarsila do Amaral que se transformou em um dos símbolos do Modernismo e do Movimento Antropofágico.

**O Manifesto da Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade foi lançado em 18-03-1924, no Jornal Correio da Manhã e O Manifesto Antropofágico, do mesmo autor, foi publicado no primeiro número da Revista de Antropologia, na cidade de São Paulo, em 01-05-1928.

Seilla Carvalho
Enviado por Seilla Carvalho em 26/02/2008
Reeditado em 13/06/2011
Código do texto: T876275
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