MORALIDADE MIÚDA (Giannotti)
Novos modos de convívio social e político aboliram as formas paradigmáticas de existência; modelos de sucesso se tornam as metas a atingir
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Pode surpreender que as pessoas comuns se escandalizem com a compra de tapioca ou de um saca-rolha usando cartão corporativo e nem se importem com as grandes tramóias que se armam na composição do orçamento do país ou com os ganhos gigantescos dos bancos operando em território nacional.
Não se trata, a meu ver, de perseguir os detalhes deixando o grosso na escuridão, mas de um exemplo muito interessante de como hoje em dia funciona o juízo moral.
Vivemos uma experiência moral muito diferente daquelas do passado. Em primeiro lugar, como já insistia Michel Foucault [filósofo francês, 1926-84], cada vez mais deixamos de seguir códigos sistematizados no cuidado de nós mesmos para, em vez disso, tratar de agir de acordo com uma estética da existência.
Não estou muito convencido dessa moralidade estética, em que cada um trataria antes de tudo de configurar sua subjetividade, pois o abandono de códigos sistemáticos não implica deixar de lado o problema crucial de saber como seguimos normas morais, por conseguinte como negociamos melhor com as regras.
Ora, esse melhor não diz respeito apenas a um sujeito, mas igualmente a uma coletividade, que trata de lidar com as normas segundo padrões intersubjetivos e idealizados. Não cuidam para que as normas, por exemplo, não sejam aplicadas como se fossem uma guilhotina? Em resumo, trata-se de ir além da biporalidade do bem e do mal, evitando a permissividade, mas procurando encontrar formas de convivência mais ricas e produtivas do que aquelas vigentes no mundo cotidiano.
Fim do tipo
É notável que, nessa procura de novas formas normativas de convivência, desaparece o tipo, uma forma sui generis de sujeito exemplar. De Aristóteles a Kant os filósofos costumavam mostrar que a ação moral, sempre vindo a ser para os seres humanos, se reportava a um sujeito típico, alguém que se pusesse como fim em si mesmo.
Podia ser ele um Péricles, um santo ou uma pessoa que se mostrasse digna de ser feliz, mas sempre alguém capaz de alinhavar suas virtudes numa totalidade harmônica acima das vicissitudes do mundo.
Hoje não vejo tipos no horizonte atual, alguém que encarne uma forma paradigmática de existência. Um jovem que abandonava sua casa para seguir são Francisco imitava o mestre, mas de tal modo que buscava antes de tudo a salvação de sua alma.
Suas ações seguiam aquelas do santo, mas haveriam de abrir para a ele mesmo o caminho do céu. Por isso suas virtudes se alinhavavam em vista de um ideal comum, que, embora não estando nesse mundo, regulava a conduta cotidiana.
Desse modo, o tipo funcionava como maneira de mostrar que a vida espiritual poderia ser exercida neste vale de lágrimas.
Em contrapartida, à minha volta só vejo agora, se tiver sorte, tipos de virtudes: esse indivíduo que se sobressai por ser justo, aquele, por ser bravo, aquele outro, por ser temperado e assim por diante. Noutras palavras, é possível agir tendo o bravo como paradigma, mas sendo conivente com seus atos injustos; imitar o sábio sem esperar ter sua coragem e assim por diante. Importa cada um cuidar de si desenvolvendo uma virtude regional, um aspecto de sua personalidade.
O tipo é passagem para um mundo do dever ser, passaporte para uma coletividade alinhada pelas virtudes espirituais de seus membros. Quando nos tempos de hoje as tipologias morais se desmoronam, os exemplos de virtude são desse mundo, tal como ele é e sempre será. Em vez do santo ou da pessoa ilibada temos o célebre. Por todos os lados não se assiste ao culto de celebridades?
A tal ponto que os religiosos, aqueles que precisamente deveriam ser condutores para uma vida do espírito, tratam antes de tudo de celebrizar-se rezando ofícios espetaculares, vestindo roupas caríssimas, viajando como celebridades políticas.
Nessas condições, não é estranhável que chefes de igreja possam estar cumprindo no exterior penas por lavagem de dinheiro e continuarem despertando êxtases em multidões.
Novo homem?
Parece-me que essa desmontagem dos tipos deve ter algum elo com a desmoralização do legislador revolucionário. Sabemos que políticos da Revolução Francesa, imaginando que o mundo estivesse vazio depois da queda da República romana, pretenderam vestir a toga do legislador, encarnando ideais republicanos.
E muito desses intelectuais, obviamente de origem pequeno-burguesa, trataram de agir politicamente como se fossem planejadores de uma nova era e de um tipo de ser humano. Um novo homem haveria de nascer das mãos de um Saint Just, de um Robespierre, e, na seqüência, de Lênin, Stálin, Mao, Fidel e -é horrível dizer- de um Hitler. Terminando a era das revoluções, também não terminaria a predominância moral dos tipos?
Hoje em dia importa antes de tudo, em vez de legislar, em vez de conformar o homem do futuro, ser um vencedor globalizado como o capital. E, para vencer, nada melhor do que imitar os vitoriosos.
Nesse panorama, o político ocupa posição moral muito particular. É de esperar que seja um célebre empreendedor, fiel na defesa dos seus representados. Poucos, entretanto, jurarão por sua honestidade e por sua fidedignidade. Haverá de ter uma virtude, mas as outras somente se forem necessárias para o sucesso da carreira política. Daí importar-lhe mais a imagem do que uma forma exemplar de dever ser.
Assim sendo, suas ações perdem qualquer dimensão normativa explícita. Não age mais tendo em vista um ideal de ser humano; no máximo imagina poder implantar algumas obras e instituições virtuosas. A imitação não normatiza.
Na medida em que o político deixa de legislar tendo em vista um tipo de ser humano, atuando tão-só pensando nos futuros proveitos de suas ações, passa a ver o passado como um campo de experiências a ser explorado pelo que ele é.
Convém então imitar o bom sucesso e, sempre que possível, fazer ignorar o exemplo passado para que ele se apresente como exemplar. O político se transforma então num engenheiro inventor sem nenhuma preocupação com o sentido de uma vida coletiva.
Crise congelada
Quando o político se pensava como estrito legislador, fazia da moral um dos principais eixos de sua pregação. Quando se transforma num célebre caçador da vitória a todo custo, no máximo promove uma das virtudes: um é fazedor, outro, justiceiro, outro, ainda, um pacificador. Cada um entra no jogo político com seu capital, com sua celebridade diferenciada, mas o próprio jogo, se não procura o sentido da vida, é bem capaz de pô-la em risco.
Não é por isso que, nas condições normais, a política é vista como uma das profissões mais desprezíveis, já que descuida do sentido global de nossas ações, enquanto durante uma crise é aquela mais prezada, apresentando-se como a vida salvação?
Vivemos numa situação de crise congelada. Talvez não venha a ser por isso que ser um tipo moral importa tão pouco ao político? Célebres criminosos não fazem política até mesmo dentro de prisões de segurança máxima? Os bons e os maus são acolhidos no show das celebridades e, depois de começada a festa, vale quem tiver mais poder. Ora, não se imagina o poderoso sendo pego com a mão na boca da botija.
Quando isso acontece no miúdo, são fajutos seu poder e sua celebridade.
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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
Fonte: Suplemento "MAIS!" da Folha de são Paulo, em 24/02/2008