Minha rainha: Rita Ribeiro.
Em 1982, ecoou nas Rádios de todo o país uma música que se tornaria um dos grandes sucessos do cancioneiro popular brasileiro em todos os tempos, o samba “Minha rainha” de autoria da cantora e compositora maranhense Rita Ribeiro. Esse samba, inicialmente gravado por Wilson de Assis, já possui mais de cem gravações sendo a mais recente a de Neguinho da Beija-Flor. Nas rodas de samba, nos pagodes e bares é comum assistir essa música sendo apresentada e todos os presentes a cantarem a plenos pulmões: “Olha amor/dediquei a você minha vida inteirinha/no meu sonho de amor/ fiz você minha rainha/só porque eu te amo demais”.
Rita migrou do Maranhão para o Rio de Janeiro, assim como tantos outros nordestinos, empurrada pela necessidade de sobrevivência, nos idos dos anos 1950, e trouxe com ela o ancestral sofrimento do negro nas terras do babaçu, grande reduto de escravos nos tempos coloniais, aquela terra tem a forte presença cultural dos descendentes de africanos e isso se pode perceber de diversas formas, entre as quais, na música.
Em sua infância Rita conviveu com o bumba-meu-boi e o repente, heranças de seu pai repentista, e trouxe para o Rio de Janeiro essa vivência, e, embora apenas desse início à carreira artística muitos anos depois de já estar no Rio de Janeiro, sua alma sempre guardou as impressões musicais da infância vivida no Maranhão.
Para dar vazão ao sonho de ser artista e de compor e de cantar tudo aquilo que lhe povoava a alma, teve que romper barreiras enormes: a da cor, a de ser nordestina e a de ser mulher. Mas a força da arte foi mais forte e a fez até mesmo acabar com o casamento para sair atrás de seu sonho, de procurar meios de mostrar suas obras e finalmente vê-las gravadas.
Seu trabalho sempre teve o mais puro gosto, o mais genuíno sabor das coisas populares, o que resulta naquela precisão do olhar e da melodiosidade que fazem nossa música ser tão apreciada em todo o mundo. A obra musical de Rita Ribeiro é enquadrada no campo designado como brega, o que significa dizer que já se encontra vista de forma diferenciada pela crítica musical que na verdade não considera a música brega como esteticamente avaliável. Essa, no entanto, é uma consideração que a realidade dos fatos já exige com que seja revista, muito embora, a pura e simples popularidade e vendagem de discos obtidos pela música brega não sejam em si mesmas um motivo de qualificação.
Mas afinal de contas, qual seria o parâmetro para julgamentos de qualidade em música popular? Comparações com a cultura erudita com certeza que não. Com outros autores de música popular também não seria um bom caminho uma vez que dentro da própria música popular foi criada uma hierarquia que recebe o nome de MPB com letras maiúsculas e garrafais. O fato é que muitas hierarquias e padrões de qualidade têm sido criados e utilizados para justificar a busca de uma elitização da música popular. Mas a verdade é que em sua multiplicidade criativa, a música popular vai em frente sempre se renovando e criando novos e novos clássicos que depois acabam sendo aceitos e reverenciados por muitos membros de nossa elite cultural.
A obra de Rita Ribeiro, a autora de “Minha rainha”, ainda permanece precisando de uma maior e melhor atenção que inclusive a tire do injustificável esquecimento, com muitos inclusive achando que a Rita Ribeiro que vive atualmente na mídia é a primeira e única quando na verdade não é. A Rita Ribeiro, primeira é a do Nascimento, criadora de uma vasta obra com mais de 50 composições gravadas, a maioria delas com diferentes parceiros, incluídos muito mais pela premência da divulgação e da gravação do que exatamente pela parceria na criação.
A obra de Rita Ribeiro é rica exatamente por seu sabor popular, por sua cor nordestina, por seu sabor maranhense. Uma de suas mais emblemáticas mostras dessa capacidade e sensibilidade de captar a alma e o sentir populares é “Igual a Madalena” que descreve uma possível prostituta abandonada em busca de abrigo e carinho, mas que muito bem pode simbolizar a dor geral de tantas e tantas milhares de mulheres brasileiras sofridas por esse país a fora, tão decantadas como belas, mas tão mal tratadas na vida real: “Igual Madalena/ Com o travesseiro e a coberta na mão/Ela sai caminhando/Pedindo e clamando um pedaço de pão/E quando anoitece ela reconhece/Que o mundo a esqueceu/Ali mesmo ela dorme com a dor enorme que a vida lhe deu/Acorda cansada prossegue a jornada sem um rumo qualquer/Cansada da vida já desiludida perdeu sua fé/Igual Madalena aquela morena de Jerusalém/A mais sedutora e tão pecadora não é de ninguém”.
Ressalte-se que na música popular o texto poético possui uma riqueza extra que advém da melodia e que somente a audição da música pode revelar. E a obra de Rita Ribeiro está repleta dessa musicalidade que os eruditos não reverenciam. São forrós saborosos como “Cara de sapo”, são toadas, boleros, sambas-canção, e outras melodias inspiradas na musicalidade do Maranhão, resquícios dos bumbas-meu-boi de sua infância.
Sua obra também está impregnada de um grande lirismo, que pode ser visto, por exemplo, em obras como “Noite”: “Noite/Me empreste um pouco o teu luar/Quero sonhar que ainda sou feliz ainda/Noite/Só quero ter um grande amor”. Lirismo que também é colocado para falar da saudade de sua terra natal como é o caso de “Meu lugar”: “Eh meu torrão/Pedaços da minha vida/Choro quando me lembro/Da minha infância querida (...) Um bom filho não esquece/O cheiro do seu torrão/O tempo passa e a gente cresce/Nesse mundo de ilusão/Sonhando com coisas bonitas/Quer uma vida melhor/Mas quando a verdade grita/Amarga que nem jiló”. São versos que expressam a saudade e a dor da partida da terra natal na busca de uma ilusão que deixa marcas profundas na alma de cada migrante. E são versos que remontam ao poeta Gonçalves Dias e seu sempre lembrado poema “Canção do exílio”.
Mesmo que toda obra artística seja um grande fingimento e o poeta um grande fingidor, nesse fingir sempre há um que de autobiográfico, pois o Ser Humano, mesmo que travestido de Deus, criando universos artísticos, tem sua limitação e essa limitação é dada por vivências e experiências as quais sempre se revelam de alguma forma em suas obras. E tal qual ocorre com Rita, que acaba contando um pouco de si e de sua luta pela sobrevivência e pelo reconhecimento de sua arte, em suas músicas. É o que vemos em “Coragem”: “Coragem é o meu nome/Foi minha mãe que me deu/Duvido que alguém apague/O que Deus do céu escreveu/Eu sou corrente de aço/Sou apenas o que faço/Simplesmente sou apenas”.
Assim é Rita Ribeiro, coragem de ser artista, mulher, nordestina, mãe e batalhar seu espaço nesse injusto país que sempre negou as oportunidades especialmente a seus mais diletos filhos. Mas Rita trouxe nas veias o sangue e a coragem que outro maranhense, João do Vale, já identificara no “Carcará”, “mais coragem do que homem”.
Sua obra está aí, infelizmente de mais difícil acesso do que seria justo ao seu valor, pois deveria estar sendo cantada e gravada de modo constante para que ficasse em número maior ainda na memória popular além de “Minha rainha”. Talvez até quem sabe, essa nova Rita que recentemente andou gravando a “tecnomacumba” se volte para suas raízes maranhenses e reverencie a verdadeira Rita Ribeiro para que essa não precise repetir os duros versos do samba-canção “Coragem”: “Sinto que estão me negando/batalhas que eu já ganhei”.
Fica aqui o registro de alguém que teve a oportunidade de conhecer a obra poético-musical dessa grande artista Rita Ribeiro do Nascimento e que gostaria que tal oportunidade pudesse ser dada a outros, em especial a nossos jovens tão carentes de belas mensagens e melodias.