Bossa Nova punk
Precisamos (?) de uma “Nova bossa nova” que privilegie os milhões de músicos autodidatas do Brasil de Tim Maia.
“Você é um cara de pau!”. Foi o que me disse um amigo após eu ter-lhe dito que eu toco “Águas de março” ao violão com apenas três acordes. Mas é verdade, eu consigo, e quase não se sente falta de nada. Bem, sente-se sim, mas nada que seja empecilho para eu cantá-la até o fim, caso seja necessário. Será que o nosso querido maestro soberano ia gostar de saber de uma coisa dessas? Talvez sim. Eu, se fosse ele, gostaria.
É um paradoxo. Ao mesmo tempo que João Gilberto, o cantor “punk” da Bossa nova, deu seu recado claro: você pode cantar em público e ainda fazer sucesso internacional mesmo que seja dono de uma voz “pequena”. Tom Jobim, com sua formação clássica, desafiou a paciência dos violonistas de todo o país com suas canções de trinta acordes compostas ao piano. Então. Cantar como João não é difícil. Não é impossível, pelo menos. Mas tocar o seu maior sucesso – ao lado de “Chega de Saudade” – a anti-canção-protesto “Desafinado”, composta por Tom Jobim e Newton Mendonça, aí já são outros quinhentos. Eu tenho até medo de morrer sem antes ter aprendido tocar “Desafinado”. Tenho medo mesmo. Pois a canção é a minha preferida da Bossa nova, e é linda, e eu, definitivamente não consigo. Não consigo, pô!
Quanto a João, tive a comprovação de que ele é mesmo punk depois que eu soube de suas declarações de que a Bossa nova não existe nem nunca existiu. Ele chegou a suprimir a expressão “bossa-nova” da letra de “Desafinado” em suas últimas apresentações ao vivo, cantando apenas “... isso é muito natural”. Estou falando de um dos pais do movimento. Movimento? Estilo? Nem sei mais o que dizer diante disso.
Fui tocar em um jantar do Rotary Club num sábado desses. Um dos diretores locais – o que me havia contratado para um show de voz e violão – me propôs fazermos em junho próximo um grande jantar de comemoração do seu aniversário de 50 anos, aproveitando os 50 anos da Bossa nova. No tal jantar faríamos um encontro com músicos locais, onde o repertório seria cem por cento – adivinhem – ...bossa nova. Eu não disse nada pra ele. Nem que sim e nem que não quanto a minha participação e sobre a viabilização do encontro. Cá entre nós. Eu acho que ele terá dificuldade em organizar isso. A começar pela falta de músicos locais que tenham um bom repertório de bossa nova. Quase ninguém aqui pelas bandas onde tenho residência – no sul do Estado – toca bossa nova. E quando toca, são só alguns poucos sucessos – não dá uma noite.
Então pergunta-se: como se chegou a isso? O estilo que – junto ao samba (e bossa nova não deixa de ser samba) – é o que melhor representa o Brasil no exterior, não consegue ser executado pela maioria dos músicos – e a maioria de nossos músicos é autodidata – que tocam na noite, nos bares que estão no nosso próprio território. Pode haver várias explicações pra esse fenômeno. Quando um músico “da noite” vai a um pequeno palco com seu violão e toca uma canção de Tim Maia com três acordes ele consegue agradar a todas as mesas, e é aplaudido após ter tocado com os olhos fechados a música de harmonia simples e bonita. Agora imagine se ele toca – volto nela – “Desafinado”. Bem. Nem todos vão conhecer a música. Quase ninguém saberá acompanhar a letra. E o músico terá, no máximo, dois aplausos, dos dois músicos profissionais que tomam chope da Brahma, de pé no balcão. Ele vai ficar feliz com o reconhecimento. Vai pensar: valeu a pena aprender os 40 acordes dessa emblemática canção, pois quem entende música gosta e aplaude. Então, para azar do dedicado violonista, na próxima semana estará no bar, em seu lugar, um outro músico tocando Tim Maia, ou então o repertório de covers internacionais de Emerson Nogueira.
Salve Tom Jobim e todas as suas maravilhosas criações. Salve todos os realizadores que levam (levaram) o selo “Bossa nova”. Esses grandes compositores e grandes músicos com suas mirabolantes dissonâncias e complexas harmonias não têm culpa de terem sido tão bons. E, em muitas vezes, o que é bom é mesmo difícil – tanto na arte como na vida. Mas, por favor, não façamos disso uma regra. Salve Tom, salve João Gilberto, salve Baden Powell, Carlos Lyra, salve Toquinho, salve Vinícius de Moraes. E salve os punks que tocam “Águas de março” com apenas três acordes.
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