Venezuela 451

A derrota do comandante Chávez, por uma pequena margem, no referendo sobre o tamanho do seu poder, fortaleceu os oposicionistas dentro e fora do país, mas por outro lado serviu para os chavistas de lá – e os lulistas daqui – entoarem o coro de que nunca na história da Venezuela se viveu momento mais democrático.

A democracia é isso mesmo: há espaço até para os sofismas que deturpam os fatos, invertem a lógica e afirmam os valores da liberdade através de sua negação na prática. O que é preciso é cuidar para que os ataques permitidos não logrem destruí-la. Desta forma, a “humildade” do comandante após a divulgação oficial do resultado deve ser encarada menos como gesto de grandeza, e mais como sinal de alerta para o que ainda vem pela frente, até as eleições presidenciais agendadas para 2012. Em cinco anos, será que Chávez vai se cansar do poder? E abandonar o projeto “bolivarista” de um “socialismo latino-americano” que se confunde, por acaso, com ele mesmo?

Travestido de democrata e herói nacional, o presidente venezuelano, em seu indefectível traje vermelho, poderia ser um personagem do filme Fahrenheit 451, dirigido por François Truffaut, baseado no livro de Ray Bradbury. Nele, os bombeiros de uma sociedade totalitária do futuro provocam incêndios ao invés de apagá-los. Incêndios causados por lança-chamas sobre objetos perigosos, proibidos pelo governo – os livros.

“Porque os livros deixam as pessoas infelizes”, explicam as autoridades da ficção. Toda informação necessária vem da programação da TV estatal e de histórias em quadrinhos sem textos. Em Fahrenheit 451 – título alusivo à temperatura em que o papel se incendeia – a tutela do poder sobre as pessoas é mostrada como a subtração da capacidade crítica, simbolizada pela caça implacável às obras literárias. Sequer existem obras permitidas, como na inspiração histórica do Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica, pelo qual a Sagrada Congregação da Inquisição era autorizada a queimar muitos livros, mas deixava aqueles que espalhavam a palavra divina (ou não se metiam com ela).

Se 400 anos depois de criada, a Lista Negra da Igreja ainda trazia, em sua 32ª edição, de 1948, 4 mil livros relacionados, o artifício da censura parece ultrapassar o terceiro milênio cristão com desenvoltura. Como estampou a capa da revista Continente em julho, o debate sobre o assunto voltou a ser quente, a reboque da proibição de livros biográficos e da classificação dos programas televisivos, no Brasil, e das restrições de acesso à internet em diversos países.

Antes de ser derrotado pelo plebiscito – derrotado “por enquanto”, como ele mesmo frisou – Chávez teve aprovada no Congresso, em outubro, emenda constitucional que suspende o direito à informação durante estados de exceção – direito que era garantido pela Constituição. Antes disso, reforma no Código Penal venezuelano considerou como crime o “livre exercício da opinião”, com pena de prisão para aqueles que criticam o governo.

Os aspirantes a ditadores são como bombeiros de Fahrenheit – sob o argumento da felicidade geral, minam a liberdade individual para calar o contraditório pela força. Com o controle do Legislativo e do Judiciário, o presidente da Venezuela lamentou que o país não esteja pronto para abraçar o “socialismo do século 21”, mas já avisou que o resultado eleitoral desfavorável não irá impedi-lo de fazer as reformas que desejar, “por outros meios”.

O fogo antidemocrático de Chávez está longe de ser debelado. Que o seu lança-chamas não seduza outros bombeiros de Fahrenheit, em um continente que já sofreu o suficiente nas mãos dos incendiários da liberdade.

(Publicado no Jornal do Commercio/PE, em 10.12.07)

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 07/02/2008
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