A culpa que nunca é nossa

As causas da violência que agride o cidadão podem ser vistas em um passeio ligeiro por nossas pontes, praças e avenidas, onde transborda a sociedade marginal. As causas da violência invadem o traçado urbano e poluem, de refugo humano, a cidade formal. Cenas tristes e estatísticas frias ilustram as causas da violência, estampada diariamente no jornal, promotora da voluntária retração e obrigatório retiro em indivíduos que não sabem o que fazer. Para a maioria, sobra a precaução como solução. Será que ninguém sabe o que deve ser feito?

Quando se sabe o que se tem que fazer e não se toma certa direção, é por falta de interesse, ou porque se é incapaz de dar o primeiro passo. Mesmo que a vontade apareça, parece uma peça sem encaixe. Liberdade sem necessidade, causa sem importância ou raiz sem irrigação, que não vinga.

Por outro lado, quando se tem que fazer algo e não se faz, o resultado vem de qualquer forma e cobra a fatura do inconseqüente. Cobra pelo ato que se esconde de medo, vergonha ou comodismo.

Ocorre que a omissão se esgarça, o omisso um dia cansa. No indivíduo, a ação poupada redunda no vício da espera ou descamba para o desespero. E com a sociedade, o que acontece? Uma sociedade que espera é aquela que conhece, cedo ou tarde, a violência. A violência também é fruto da inconseqüência – da economia de ações conseqüentes. Então se acumula, no corpo social, como bola de neve, onde o cansaço produzido, a cada volta, resulta em volume maior de violência.

Assistimos ao drama da violência em nossas ruas e ficamos revoltados, assustados, indignados. De quem pode ser a culpa que jamais é nossa? Todos sabemos o que se tem que fazer para diminuir a marcha violenta. Os consensos são os mesmos em qualquer fórum, e quase toda voz emana a mesma língua, dá a mesma receita. Falta vontade, mas não apenas a vontade política. Falta vontade social.

Como deprimidos ou viciados que caem numa espiral, as pessoas se nutrem do medo e da indignação. E aí aumenta a sensação de impotência, já que não se percebe a paralisia patrocinada pela inação. Instaura-se o pânico, discursos e reclamos se amontoam e, no entanto, ninguém se ouve: a adrenalina não raciocina e o perigo não sai de vista. Somos uma colônia de bichos assustados, acuados por outros bichos mais assustados ainda.

O poder público tem responsabilidade direta sobre a realidade coletiva na medida em que os grupos sociais se organizam e assumem suas próprias responsabilidades. No que diz respeito à nossa tragédia social, a violência não pode ser um problema da burocracia, pois não virão do burocrata as soluções. O cidadão que pode fazer alguma coisa mas prefere esperar pelo Estado é um cidadão omisso. O Estado é sempre o maior depositário de culpas que nunca são nossas. É o vale para onde escoam grandes e pequenas omissões. É o lixão das boas intenções, dos nossos ideais. O que não extrai dos homens públicos e das instituições nenhum quinhão da culpa que lhes cabe – sendo talvez a principal delas exclamar em alto e bom som os limites da ação pública que não esteja embasada em correlata ação social. Se ficar no deixa-que-eu-deixo, é difícil se ir a algum lugar.

Em geral, a culpa que nunca é nossa é responsabilidade não assumida, macaquinho empurrado a ombro alheio. Enquanto poucos indivíduos – heróis nadando contra a maré – compreenderem isso em círculos sociais que se isolam, numa estratégia de guerra que prima pela segurança em detrimento da paz, a sociedade se acostuma à reação violenta como medida antiviolência. É a vitória da lógica perversa que se devia combater: aliamo-nos a ela. Um erro comum, aliás, para quem está mais atento ao erro dos outros.

(publicado no Jornal do Commercio/PE, em 07.02.2006)

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 06/02/2008
Código do texto: T847955