Raul Torres e Florêncio – Uma dupla patrimônio do Brasil
Desde que o pioneiro Cornélio Pires iniciou em 1929 as gravações de músicas caipiras muitas foram as duplas que se lançaram no mercado fonográfico. Umas mais lembradas e outras menos. Umas de duração mais curta e outras de longo caminho com muitas e muitas gravações. A dupla Torres e Florêncio se encontra nesse segundo caso embora não seja muito relembrada e muito mais se fale da carreira solo de Raul Torres como cantor e compositor do que exatamente da trajetória da dupla.
No entanto, a dupla Torres e Florêncio foi uma das de maior durabilidade no mundo fonográfico com uma atuação que se estendeu por quase trinta anos, período durante o qual a dupla lançou dezenas de discos. As primeiras gravações deles se deram em 1942, e dois anos depois a dupla se consagraria com dois grandes sucessos: as toadas “Cabocla Tereza” e “Pingo d’água” ambas de Raul Torres e João Pacífico. Em 1945, Torres e Florência obtiveram talvez seu maior sucesso com a moda-de-viola “A moda da mula preta”, também de Torres e João Pacífico, incluída até hoje entre os clássicos da música caipira.
Segundo o pesquisador Ayrton Mugnaini Jr a dupla Torres e Florêncio foi a fixadora de um estilo de canto com duas vozes mais médias e que foi a que mais influenciou outras duplas até o aparecimento de Tonico e Tinoco com um canto mais agudo.
As primeiras gravações da dupla Torres e Florêncio apresentam o modelo clássico de duplas caipiras com acompanhamento de violas no qual se destaca o toque refinado do violeiro Florêncio. A maioria das composições gravadas pela dupla remete ao universo rural retratado em composições como “Pra lá da porteira”, “Moça boiadeira”, “Rolinha cabocla” e outras, além das anteriormente citadas.
Boa parte dessas obras foi composta por João Pacífico, umas sozinho, e outras em parceria com Raul Torres. Em muitas gravações também, a dupla contou com a presença da sanfona de Emílio Rieli solando como uma espécie de terceira voz. Mas o destaque mesmo era a afinação da dupla, as vozes límpidas e claras e o ponteado da viola. As modas e toadas gravadas pela dupla falam de boiadas e de colheitas, de árvores e fontes de água pura, de rolinhas e outros pássaros, de lua nova e de lua cheia, sem deixar de lado o humor para cantar questões que colocavam o caipira diante de novidades da cidade como “As modas femininas”, “A dama do baralho”, e “Apelido dos jogadores”, entre outras. No repertório de Torres e Florêncio estão toadas, modas-de-viola, emboladas, rasqueados, e cateretês, além de um ou outro samba-sertanejo.
Tanto Raul Torres quanto Florêncio nasceram em Barretos, cidade que se destaca como aquela que abriga há mais de 50 anos maior festa de peão de boiadeiro, e dessa forma muitas das músicas gravadas pela dupla fazem referência a esse universo das boiadas. Como é o caso da moda-de-viola “Mulher baia”, de autoria do próprio Torres e que relata a dura travessia dum rio com o risco da perda da boiada.
Essa dupla era realmente tão afinada que Torres e Florêncio vieram a falecer no mesmo ano, 1970, momento em que música popular de maneira geral vivenciava amplas transformações que tinham se iniciado há pelo menos uma década antes. As próprias duplas começavam a buscar novas formas de atuação com a utilização cada vez maior de instrumentos eletrificados e com uma temática que se distanciava a passos largos daquela que seria considerada como tradicional da música caipira.
Dois anos depois, a gravadora Copacabana lançou um LP que em seu título resumiu perfeitamente o valor e a importância da dupla Torres e Florêncio: “O maior patrimônio da música sertaneja”. Nesse disco, pode-se ouvir músicas emblemáticas do estilo da dupla e das qualidades vocais e instrumentais de Torres e Florêncio. Como por exemplo, na batucada “Mariazinha criminosa”, de Raul Torres, que conta com vigoroso ponteado da viola de Florêncio. Ou nas modas-de-viola “Mulher baia” e “Casamento da onça”, de Raul Torres, e “Marica criolinha”, de Florêncio, mostras de uma maneira de narrar histórias que remetem a um tempo em que os violeiros mais do que entreterem as pessoas eram narradores que levavam de um lugar para outros as histórias, verdadeiras ou não, que eram contadas e recontadas nas noites de luar. E nesse mister, poucas duplas podem se ombrear com Raul Torres e Florêncio.
E aqui não vai nenhum sentimento de saudosismo de dizer que em tal tempo as músicas eram mais autênticas ou verdadeiras, mas apenas uma constatação e uma homenagem a essa dupla que está por merecer um reconhecimento maior de seu valor, eles que ficaram nomeados como “O maior patrimônio da música sertaneja”.