O samba-enredo reina no carnaval carioca
A evolução do carnaval carioca a partir da segunda metade do século XIX já é assunto razoavelmente estudado por diferentes pesquisadores com destaque para a cronista Eneida e sua “História do carnaval carioca”. É fato consensual considerar-se que o carnaval carioca teria vivido seu momento de esplendor no período que vai mais ou menos da década de 1900 até a década de 1950 do século passado. Esse período dourado do carnaval carioca seria marcado pela presença musical das chamadas marchinhas carnavalescas que se tornaram verdadeiras trilhas sonoras do carnaval da época.
A partir da década de 1970, entretanto, começou a tomar conta de muitos a noção de que o carnaval carioca, em especial o chamado carnaval de rua, estava morrendo. Já não se viam mais os antigos cordões, os mascarados deixavam de circular e as fantasias da colombina, do pierrô e do arlequim se tornavam cada vez mais figuras fantasmagóricas a dar conta de um tempo passado. Seria por demais demorado buscar aqui explicações para esse declínio do carnaval carioca que consigo levou também as marchinhas, mas poderíamos citar questões como o crescimento urbano desordenado do Rio de Janeiro, o período repressivo vivido a partir de 1964, assim como as transformações culturais que afetaram não apenas a cidade, mas também o país e o mundo na década de 1960, que puseram entre outras coisas, o chamada música pop de origem norte americana na ordem do dia.
Ao chegarmos aos anos 1980, década de profundas transformações econômicas, políticas e sociais em todo o planeta, e que seriam aceleradas na década seguinte, era dado como certa a morte do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro, e para muitos, a decadência das marchinhas era prova cabal de tal decadência. No entanto, o carnaval com isso e aquilo prosseguiu fazendo parte do calendário nacional, e nas duas últimas décadas do século XX, quase todos passaram a concordar que o desfile das escolas de samba haviam se tornado o maior espetáculo da terra, o ponto central do carnaval carioca.
Para os estudiosos, entretanto, o samba-enredo passou a ser visto mais e mais como uma deturpação daquilo que já fora, tornara-se mais e mais acelerado e degenerado, e mesmo a crítica que fora feita por Sérgio Porto na década de 1960 com o seu “samba do crioulo doido” era de certa forma revista de maneira nostálgica com muitas vozes se levantando para dizer “aquilo sim é que era samba”.
Mas, como diz um desses sambas, “roda gira, gira roda”, o século XXI chegou e com ele uma nova faceta do carnaval carioca, num movimento que começou a ser classificado como do “renascimento do carnaval de rua”, a partir da multiplicação de blocos pela cidade afora arrastando cada vez maiores multidões atrás desses alegres cordões carnavalescos pós-modernos, o carnaval carioca voltou a dar o ar de sua graça.
Não existe ainda uma contabilidade realmente certa da quantidade de tais blocos, pois a cada ano surgem novos de norte a sul da cidade. Existem de vários tipos deles, desde aqueles cerca de vinte que participam dos desfiles oficiais de blocos da Riotur até aqueles que ninguém a não os que desfilam neles sabe de suas existências. O certo é que sai ano e entra ano e os blocos se firmam e vão surgindo novos, mesmo que alguns não resistam a mais do que um ou dois carnavais. Outros, entretanto, vão se firmando e criando história, isso sem contar aqueles que já se tornaram instituições do carnaval carioca mesmo que não recebam a devida atenção, divulgação e exaltação a que fazem jus como são o Cacique de Ramos, O Bafo da Onça, Os Boêmios de Irajá e o Bloco do Bigode. Alguns mais recente já firmaram o ponto e em breve também se tornarão referência como é o caso do Embaixadores da Folia. Isso sem falar nos blocos da Zona sul da cidade, os quais nem é preciso destacar, pois já são badalados e incensados o tempo todo.
Agora uma coisa vai chamando cada vez mais a atenção nesses blocos, é a trilha sonora por eles escolhidos para o aquecimento ou mesmo para o desfile. No começo desse movimento a tendência foi se tentar fazer uma espécie de retorno aos chamados “áureos tempos” do carnaval carioca e suas marchinhas. No entanto, tal movimento não logrou grandes resultados. A princípio por dois motivos. O primeiro é que as marchinhas, por mais fantásticas que fossem, tem contra si o fato de estarem ligadas a outro tempo, a uma outra mentalidade e conseqüentente, a outro ritmo. Empolgam, mas se esgotam rápido e não servem para manter uma série de ensaios por muito tempo. Por outro lado, a tentativa de criar novas marchinhas tem esbarrado basicamente no mesmo problema e equivale a querer criar novas modinhas nesses tempos de velocidade estratosférica. Assim, mesmo com alguns blocos insistindo em criar seus próprios temas e aqui estamos excluindo os blocos que desfilam participando do concurso oficial que pela sua natureza exige deles um determinado comportamento, o que se verifica é que a trilha sonora que embala os ensaios e muitas vezes os próprios desfiles de boa parte dos blocos são mesmo os sambas-enredo.
Contrariando a todos os prognósticos, julgamentos e definições, a trilha sonora das escolas de samba, feita para durar o tempo dos ensaios e se extinguir ao fim dos desfiles, vai resistindo mais e mais e muitos dos sambas-enredo são hoje verdadeiros clássicos da música popular brasileira. São às vezes sambas do ano que passou, ou de quatro ou cinco anos atrás, às vezes um ou outro de dez ou vinte anos. E quando tocados com vigor pela bateria de cada bloco todos passam logo a cantá-los e a empolgação está garantida.
Esse fato é interessante e importante porque revela essa nova face do carnaval carioca no qual o modelo de musicalidade surgido nas escolas de samba se tornou gradativamente predominante, pois não há ensaio de bloco, seja ele de que ponto for da cidade, mesmo aqueles que possuem seus próprios enredos e sambas, que não ponha para tocar um samba-enredo que logo é saudado pelo gingar das passistas e pelo requebrar dos presentes, seja com os pés, as mãos, os dedos, ou simplesmente o balançar do copo de cerveja na mão.
Assim, relembrando Nelson Sargento no seu antológico “Samba, agoniza mas não morre”, ele hoje se veste de nobre no desfile principal, que em sua grandiosidade parece “esconder gente bamba”, mas nas ruas, becos, vielas e outras avenidas da cidade, ele, o samba, em sua forma mais nobre, segundo os próprios sambistas, o samba-enredo, domina e reina fazendo a cidade gingar e serpentear pelos bairros em multidões cada vez mais ampliadas nesse novo carnaval carioca do século vinte um onde o samba-enredo é quem reina.