Olhos nos olhos

A expressão “olhos nos olhos” denota uma entrega afetiva, uma transparência de atitudes e, sobretudo um gesto de sinceridade. Hoje se tornou quase um chavão a exigência dos olhos nos olhos para caracterizar alguma conversa séria, de onde se deseja haurir algum proveito para os envolvidos. Vivemos em um tempo de desfaçatez, onde se diz uma coisa e se pratica outra, época em que o discurso em muitos casos contradiz a realidade.

Com isto as pessoas se tornam céticas, desconfiadas, arredias e pouco afeitas à entrega e à abertura. Justamente por causa desse tipo de deficiência, as relações esfriam, os compromissos se atenuam e as responsabilidades deixam de ter aquele peso que delas seria lícito esperar.

Todo esse proêmio visa introduzir o assunto, que brota de um fato que tive oportunidade de verificar um dia desses, ali no centro de Canoas, na quadra que vai da Caixa ao Correio, onde tem uma sorveteria esperta, onde o vento, que lembra a brisa de Mykonos, junto com os gelados, dissipa os calores do verão.

Pois foi numa tarde dessas, quando esperava Carmen que havia ido ao dentista, que me sentei numa das cadeiras que gentilmente a sorveteria coloca na calçada e, degustando um sorvete, me pus a observar as pessoas que passavam. Um cronista precisa estar sempre atento aos fatos. Não é tão importante saber escrever; o que resolve é ter senso de observação.

No meio de tanta gente enxerguei um casal. Ele um homem de uns 25 anos, carregando nas mãos um capacete de motoqueiro. Ela, uma moreninha alta e esbelta, devia ser mais jovem que o rapaz. Cada um veio de uma direção e se encontraram bem na minha frente. Pela efusão demonstrada, devia fazer algum tempo que eles não se viam.

O começo do assunto foi formal: como vai, o que fazes, como está a família e outras questões sociais, apropriadas a um reencontro de duas pessoas. Como estava muito próximo não pude deixar de escutar as primeiras palavras daquele encontro. De repente as coisas tomaram o rumo de um colóquio mais íntimo. Passaram a falar mais baixo, as palavras eram entremeadas de sorrisos marotos, e a distância entre os dois, que a princípio era formal, diminuiu. Após alguns instantes ele estendeu o braço e o colocou sobre o ombro da moça. Naquela atitude de intimidade, como eles falassem aos sussurros, só pude enxergar um gesto que marcava a evolução daquele momento: eles não se distraíam com nada ao redor, pois se olhavam mutuamente, com os olhos-nos-olhos.

Pelo inusitado daquele romantismo que ocorria ali na calçada fiquei observando atentamente o casal, quando ela levantou o braço, envolveu o pescoço do rapaz e deu-lhe um breve beijo na boca. Menos que um beijo de novela, mas mais que um mero “selinho”. Ato contínuo, os dois deram um passo atrás, se olharam bem fundo e cada um seguiu seu caminho, sem dizerem nenhuma palavra. Deram meia-dúzia de passos e cada um, ao mesmo tempo se voltou para trás, olhou o outro, sorriu e foi adiante.

Filósofo e escritor

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 23/01/2008
Código do texto: T830044