O MEDO
Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), pensador renascentista, escreveu o clássico livro, O Príncipe, entre os anos de 1511 a 1513, mas somente publicado em 1532, cinco anos após a sua morte. Apesar de haver controvérsias sobre essas datas entre historiadores, todos concordam, no entanto que ele dedicou a famosa obra, dividida em Capítulos, como uma espécie de alerta político-administrativo e social ao duque Lorenzo de Médici, governante da cidade de Florença, norte da Itália.
Todavia, por fidelidade ao tema deste artigo proponho aos leitores analisarmos apenas o Capítulo XVII, de “O Príncipe”, ou seja, Da Crueldade e Piedade e se é Melhor Ser Amado que Temido ou Melhor Ser Temido que Amado. Antes porém, destaco que Maquiavel promoveu uma verdadeira ruptura na história do pensamento político, não só daquela época, mas praticado por muitos “Príncipes” ao longo da história, e bem mais nos apocalípticos dias de hoje. Assim sendo, podemos afirmar que o Pensador florentino não era apenas um filósofo teórico, mas também um filósofo de ação, prático. Pois até então, a teoria do Estado e da sociedade nada mais era do que especulação filosófica pura e simples. Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), por exemplo, estudaram esses assuntos (Estado e Sociedade) vinculados simplesmente à moral, descrevendo ideais de organização política e social, de bons governantes e de sociedades justas. Estas se tratavam porém, a meu ver, de reflexões abstratas desprovidas de materialidade. A “conexão” entre Estado e Sociedade, formulada por Maquiavel consistiu, então, em verdadeiro choque de uma palpável realidade.
Voltando ao Capítulo XVII de “O Príncipe”, onde Maquiavel, em resumo, aconselha: Digo que todo o príncipe deve desejar ser tido por piedoso e não por cruel. No entanto, deve ter cuidado em não usar mal desta piedade. (…) Portanto um príncipe deve fazer pouco caso da fama de cruel a fim de conservar os seus súbditos unidos e fiéis. (…) Contudo, deve ser prudente no crer e no agir, não ter medo de si mesmo; deve proceder de um modo temperado, com prudência e humanidade; que a demasiada confiança não o faça incauto e a demasiada desconfiança o não torne intolerável. (…) Nasce daqui uma questão: se vale mais ser amado que temido ou temido que amado. Responde-se que ambas as coisas seriam de desejar; mas porque é difícil juntá-las, é muito mais seguro ser temido que amado, quando haja de faltar uma das duas. Porque dos homens se pode dizer de uma maneira geral, que são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ávidos de lucro e enquanto lhes fazes bem são inteiramente teus, oferecem-te o sangue, os bens, a vida e os filhos quando, o perigo está longe; mas quando a necessidade se avizinha, revoltam-se. (...) Os homens têm menor escrúpulo em ofender um que se faz amar, do que um que se faz temer, porque o amor está unido com o vínculo da obrigação o qual, por os homens serem maus, se parte na primeira ocasião em que surja o interesse, mas o temor é sustentado pelo medo do castigo o qual nunca se perde.
Queiramos ou não, Maquiavel tinha certa razão nesse particular, pois o homem, - cujos adjetivos ele descreve - “respeita” muita mais a quem tem medo, como os cruéis, os temíveis inimigos, por exemplo, do que quem o ama de verdade, como os pais, amigos fiéis, etc, pelo simples fato de ter a certeza da impunidade ou revanche, diante de uma agressão física ou verbal, desferida a um ente que lhe quer bem.
Aliás, quando sentido individual ou mesmo coletivamente o medo aprisiona, absorve as potencialidades dos seres humanos. Faz com que sonhos, projetos pareçam distantes ou irrealizáveis, levando à acomodação, ao recolhimento, à ansiedade, à depressão. Há medo de todos os tipos, como o medo da morte, o medo da vida, o medo da dúvida, o medo da dívida, o medo da fome, o medo de ser, o medo de estar, o medo da solidão, o medo da Justiça, o medo de Deus.
Antes porém, de deter-me ante o principal dos medos, em minha opinião, o “temor a Deus”, que muitos interpretam com "medo de Deus", gostaria, até por questão de imparcialidade reflexiva, abrir aspas ao grande pensador, filósofo e teólogo holandês, Baruch de Espinoza (1632 – 1677), que a esse respeito disse em uma de suas obras: as superstições inventadas por cada um de nós vem de um inconfessável medo "místico", de um insondável "castigo divino", que faz com que repitamos rituais absurdos apenas para não "alterar a ordem das coisas", é como imaginarmos que se não for executada determinada "mania", o céu nos castigará.
Agora, conforme prometido no parágrafo anterior, passo a referir-me especificamente ao chamado “Temor a Deus”. Para isso chamo a atenção para um antigo conto judaico, “O Rabino e o Fabricante de Sabão”, que por razões óbvias, os cristãos modificaram seu título para: “O Cristão e o Fabricante de Sabão”, a fim de concluí-lo com uma citação do Novo Testamento. De qualquer forma ele não deixa de ser inspirador. Ei-lo:
Certo dia, um fabricante de sabão, declaradamente ateu, quando estava caminhando com um cristão, disse: “Há algo que não consigo entender. Temos religião há milhares de anos. Mas vemos maldade, corrupção, desonestidade, injustiça, dor, fome e violência em toda parte. Parece que a religião não melhorou o mundo em nada. Então lhe pergunto: que utilidade tem ela?” O cristão não respondeu de imediato, mas continuou a caminhar com o fabricante de sabão. Por fim, chegaram a um parque onde algumas crianças cobertas de sujeira estavam brincando na terra. “Há algo que não entendo”, disse o cristão. “Olhe aquelas crianças. Temos sabão há milhares de anos, mas veja como aquelas crianças estão imundas. Que utilidade tem o sabão?” O fabricante de sabão replicou: “Mas senhor, não é justo culpar o sabão por aquelas crianças sujas. O sabão tem que ser usado para cumprir seu propósito”. O cristão sorriu e disse: “Exatamente”, os ensinamentos de Cristo precisam ser aplicados à vida! “Felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a praticam” (Lucas 11:28).
Assim sendo, os cristãos afirmam que o “Temor a Deus” trata-se de um “Dom”, o qual, no Velho Testamento, o livro de Provérbios, atribuído ao Rei Salomão, reforça em seu Capítulo 9, Versículos 10 e 11: “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria; e o conhecimento do Santo, o entendimento. Porque por mim se multiplicam os teus dias, e anos de vida se te aumentarão.” Ou seja, o “Temor a Deus”, normalmente é confundido com medo ou pavor de Deus, como se Ele, o Pai Amoroso infligisse um castigo a cada pecado ou erro cometido por nós. Pobres de nós se assim fosse! Deus é amor e não castiga, antes, perdoa nossas faltas e espera nossa conversão. Esse Dom, sem o qual não podemos ser discípulos de Jesus, revela a nossa filiação Divina, gerando no mais íntimo de nosso ser o profundo desejo de não magoar nem ofender Aquele que nos deu a vida e vive em nós, não por medo, mas por respeito, amor e obediência.
Aliás, nobres leitores, sabemos que o medo sempre foi uma grande arma. E como tal observo também que, muitas vezes, é um instrumento do Estado e dos poderosos que o controlam. Todas as ditaduras, todas as tiranias, sem exceção, utilizaram-se (e utilizam-se) do medo como a principal ferramenta de sustentação política, justificativa para subtrair direitos e liberdades de seus cidadãos e para realizar ações injustas. Nesse aspecto inclusive, temos testemunhado o terrorismo midiático a mando de poderosos capitalistas mundiais, sem nenhum viés ideológico, político, ético-social, sobre “pseudos” cataclismos, pandemias, aquecimento global, etc, com os escusos objetivos de destilar medo na humanidade, a fim de atender único e exclusivamente a seus insaciáveis interesses econômicos, políticos e de poder sobre as massas.
Nesse mesmo sentido, Nietzsche, o grande filósofo alemão disse a respeito (do medo como arma), em sua obra, A Genealogia da Moral:
Digo que os alemães tiveram de recorrer aos meios mais atrozes para lograrem uma memória, que os fizesse senhores dos seus instintos fundamentais, dos seus instintos plebeus e animalistas. Recordem-se os antigos castigos da Alemanha, entre outros a lapidação (já a lenda fazia cair a pedra do moinho sobre a cabeça do criminoso), a roda (invenção germânica), o suplício da força, o esmagamento sob os pés dos cavalos, o emprego de azeite ou do vinho para cozer o condenado (isto ainda no século XIV e no século XV), o arrancar os peitos, o expor o malfeitor untado de mel sob um sol ardente às picadas das moscas.
Ou seja, o povo alemão tornou-se dócil e obediente às leis, e normas em geral, não por nobre consciência, mas sim pelo medo da crueldade com que o Estado punia os seus infratores.
Para encerrar este artigo, conforme Maquiavel escreveu no início do século XVI, e também Nietzsche exemplifica com o amordaçamento do antigo povo alemão, convido-lhes a refletir quanto a nossa própria condição, simples cidadãos deste extenso terreiro sul-americano, que nos encontramos encolhidos, melindrados e amedrontados diante do aniquilamento do soberano Estado Democrático de Direito e o esfacelamento de nossa Constituição por aqueles “Príncipes” vaidosos, indolentes e prepotentes, os quais foram tragicamente nomeados para “guardar” esses dois instrumentos fundamentais à solidez de uma verdadeira democracia.