A criação e REcriação poética contemporânea
a criação e REcriação poética contemporânea
arnaldo antunes max martins hilda hilst e manoel de barros
introdução:
SOU UM DOS 999.999 POETAS DO PAÍS
(...)
Desses sou um dos 444.444 poetas
que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos
se estuporaram per/vertidos nas vanguardas
e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa
senão da morte do verso e da palavra e da vida de sinal
acreditando que a poesia tendia para o visual
e que no séc. XXI etc. e etc. e tal
Desses sou um dos 333.333 poetas
que depois de tanto de tanto rigor, ardor, odor, horror
partiram para a impureza (consciente) das formas
podendo ou não rimar em ar e ão
procurando o avesso do aprendido
o contrário do ensinado
interessado não apenas em calar mas em falar
fugindo do falso novo como o diabo da cruz
porque nada há de mais pobre
que o novo ovo de ouro
gerado por falsas galinhas de prata.
(...)
Sou um dos 999 dos poetas do país
que
sub/traídos dos 999.999
serão sempre 999 (anônimos) poetas
expulsos sistematicamente da República por Platão
que um dia pensaram em mudar a história com dos versos
[pena & espada
(o que deu certo ao tempo do Camões)
e que escrevendo páginas e páginas não mudaram nada
senão de tinta e de endereço
Mas foi dessa inspeção ao nada que aprenderam
que na poesia o nada se perde
o nada se cria
e o nada se transforma.
(Affonso Romano de Sant’Anna in Poesia Reunida 1965-1999)
De acordo com o traçado poético de Sant’Anna, o poeta contemporâneo, pode ser visto como aquele que sobre si carrega o peso de todas as experimentações poéticas da história da poesia, a partir de uma perspectiva de angústia diante do novo e do nada, recriador dos espaços vazios. Mas já sem todo o afã de negação ao tradicional que impele o moderno das primeiras décadas, a literatura desse artista se (re)faz não pela negação veemente das outras estéticas como faziam as vanguardas modernistas, por exemplo. E sim pela liberdade de apropriar e re-significar estas estéticas sem a obrigatoriedade de produzir um “novo”.
Assim, o contemporâneo é globalizante e global no sentido de que abarca todas as contribuições passadas mas sem fazer disso uma regra. Enfim, não levantam a bandeira de um novo movimento literário da cultura nacional, mas “fagogitando” a proposta modernista fundada no par linguagem/realidade gera no espaço do poema sua própria realidade, transcendendo o a rigidez do pensamento modernista. Eis um breve comentário sobre a pós-modernidade literária.
Como dizia Cecília Meireles, “A vida só é possível reinventada”. Isto reflete bem o agir dos poetas contemporâneos como Manoel de Barros, Hilda Hilst, Max Martins e Arnaldo Antunes. Deles se pode dizer que (re)inventam um mundo dentro e através da linguagem. Assim é que Manoel de Barros escreve:
I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a)Que o esplendor da manhã não se abre com
Faca
b)O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c)Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d)Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e)Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f)Como pegar na voz de um peixe
g)Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
(“Uma Didática da Invenção”, in O livro das ignorãças)
E Max Martins:
Em nome do Pai filho do Nome o homem
Clama por seu nome
ao Ermo
a esmo
Chama
E se consome
O poema é fome
de si mesmo
(“HOMO POÉTICUS”, in “O risco subscrito”)
Por sua vez Hilda Hilst, escreve:
Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los
Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.
Lúcidos? São poucos.
Mas me farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.
Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro?
Se nas coisas que digo
Acreditares.
(“Poema aos homens do nosso tempo - II”, in Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)
Arnaldo Antunes recorrendo à música e à literatura trabalha esta reinvenção na faixa
Nome não:
os nomes dos bichos não são os bichos
o bichos são:
macaco gato peixe cavalo
vaca elefante baleia galinha
os nomes das cores não são as cores
as cores são:
preto azul amarelo verde vermelho marrom
os nomes dos sons não são os sons
os sons são.
só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, som são
nome não, nome não
nome não, nome não.
os nomes dos bichos não são os bichos
os bichos são:
plástico pedra pelúcia ferro
madeira cristal porcelana papel
os nomes das cores não são as cores
as cores são:
tinta cabelo cinema sol arco-íris tevê
os nomes dos sons não são os sons
os sons são.
só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, nome não
nome não, nome não
nome não, nome não.
Em ambos os poetas, pode-se ler a dissolução de um mundo e a reconstrução simbólica de um outro. Ao final da estrofe I, MB (Manoel de Barros) sintetiza o que propõe no poema, ao dizer que “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”. Aliás, no próprio título do poema (Uma Didática da Invenção), já está essa proposta, que é destrinchada, sempre por meio da transgressão, com o uso de imagens inusitadas, causando estranheza e resultando num efeito estético do maravilhoso sobre o leitor. E isso se dá recorrendo a elementos comuns do mundo, ao que seria resquício, para usar o termo de Edna Menezes¹. Essa é a maneira do poeta chegar não apenas à superfície do mundo, mas a sua essência, ou melhor, suas “intimidades”.
É com essa mesma intimidade que Max Martins (MM) remonta a um passado místico e remitifica o verbo na sua própria busca fundamental, cosmológica. A poesia reside neste entremeio da busca eterna do dizer. Max procura um caminho alternativo no poema: definir o poeta em seu princípio é defini-lo enquanto ser desejante e, por isso, criador, mas cujos dizeres (como seta) transpõe o próprio poeta. Dessa forma, MM perverte a lógica da criação e (re)cria a si mesmo na rebeldia de sua criatura expresso no movimento cíclico e autofágico em que: “o poema é fome de si mesmo”
Ao deglutir a si mesmo, o poema vem, muitas vezes, como saída para o mundo (não saída dele). Isto pode ser lido em Hilda Hilst (HH), que, segundo Josiclei de Souza, olha para o mundo como uma ave de rapina, enxergando-o de cima, com amplitude. Com isso consegue ver um mundo deteriorado, extático e nocivo como um pântano, onde imerso no lodo da realidade estão seres humanos “lobos”, inertes, sem lucidez.. Nesse ambiente, são raros os amigos ilustres.: “Lobos? São muito’(...) ”Mortos? O mundo”, (...)”Lúcidos? São poucos.” (...) “Raros? Teus amigos preclaros”. Apesar de tudo, esse mundo, por meio do poema, pode ser salvo, e nisso está sua recriação: Os lobos podem ser “aquietados”; o mundo pode até estar “morto”, no entanto, pode ser “acordado”, por meio da palavra escrita. Portanto, pode-se afirmar, a própria reconstrução da esperança, num poema redentor “Aos homens do nosso tempo”.
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MENEZES, Edna. Manoel de Barros: o poeta universal de Mato Grosso do Sul. www.revista.agulha.nom.br/manu.html.
A reinvenção do mundo resulta por vezes na cisão dos eixos sintagmáticos e paradigmáticos comuns da língua da qual fala Barthes em Elementos de Semiologia (1964):
“o transbordamento dos eixos da linguagem acarreta aí uma subversão aparente do sentido (...) Parece, pois, que é sempre na fronteira dos dois planos que se ensaia a criação”
(p. 90-91)
Sintagma seria a unidade dentro da qual não se pode incluir um segundo elemento enquanto paradigma é seria unidades pelas quais se pode introduzir novos elementos através de uma idéia mnemônica sem destroçar o sentido dessa unidade, o autor empresta os conceitos lingüísticos de Saussure. Barthes, no entanto acrescenta a transgressão desses conceitos na qual residiria a arte.
Segundo este ponto de vista a lógica da significação nos poemas contemporâneos se dá numa profunda mistura dos dois eixos que se perdem de vista particularmente mas formam um todo conciso como em MM com a junção neológica de dois termos de campos significativos diferentes.
(...)
do silêncio úmido se lambendo, lábil
labiríntima lâmina se ferindo
se punindo
((poesia), in Caminho de Marahu)
Assim um único sintagma (labiríntima) abarca o que seria expresso por no mínimo dois outros (labirinto e íntimo), e além disso cria a sensação de indissociabilidade das características que seriam por eles expressos formalmente.
Em HH a quebra se dá no campo do simbólico onde há a ruptura da idéia da fada enquanto ente sobrenatural protetor, bondoso meigo e feminino pela inversão dos significados associados à sexualidade e do conceito cristalizado de fada, como visível nos versos:
(...)
Às tardes vestia-se
Como um rapaz
Para enganar mocinhas.
Chamavam-lhe “Filó, lésbica fadinha”
(“FILÓ, A FADINHA LÉSBICA”, in Bufólicas)
MB tem esse mesmo sentimento transgressor tanto em relação aos sintgmas/paradigmas como ao significado ordinário das coisas. Ele declara
descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
(...)
Há que apenas errar bem o seu idioma
.
(“Mundo Pequeno”, in O livro das ignorãças)
Neste poema a meta-póetica do Barros aproxima-se do pensamento de Araripe Jr a respeito da literatura brasileira. Para o crítico, a criatividade literária reside em grande parte nos “erros” que os escritores cometem com a palavras.
Assim, “errando”, chega-se a um novo sentido das palavras. É o que faz AA na faixa “Acordo” do CD Nome:
Concordo
Discordo
Acordo
Antunes gera uma tensão proposital ao colidir fonicamente os dois primeiros termos numa alternância que lembra os baques de um relógio, transgredindo assim o caráter simbólico convencional e arbitrário da palavra saussureana, ao transpor seus significados. Concordo e discordo nesses termos remetem à contração e a distensão das cordas de um relógio, transformando o signo lingüístico num ícone de tempo, ao se resolver com “Acordo” – um eco, a princípio, mas que depois ganha força – síntese que suplanta a força da tese e da antítese, numa dialética constante.
Retomando o que dissemos a princípio sobre o fato de o poeta contemporâneo poder ser uma mescla de todos os estilos, poderíamos dizer que nele não há uma “moral poética” porque ele não trava a defesa de uma estética específica. Poderíamos concluir, então, que no campo artístico ele seria o super-homem nietzschiniano desapegado de valores prescritos mesmo que seja por si próprio.
Sobre esses nossos super-homens, talvez Nietzsche dissesse o que disse do seu:
Amo o que solta palavras de ouro perante as suas obras e cumpre sempre com usura o que promete, porque quer perecer.
Amo o que justifica os vindouros e redime os passados, porque quer que o combatam os presentes.
[NIETZSCHE, Friedich. Assim falou Zaratrustra. p. 27]
Esse super-homem é o poeta/criador/criatura que REinventa o mundo no poema e na língua.
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