TEM QUE RECICLAR... (Sobre a música de Bebel Gilberto)
Cantora cuida da imagem do Brasil – e nem deve saber o quanto
A supercarioca e também nova-iorquina Bebel Gilberto é hoje – quase sem querer – uma conveniente embaixadora da cultura musical brasileira. Nos últimos dez anos ela é o nome mais conhecido da música brasileira no exterior, tendo vendido bem mais de um milhão de CDs. Uma pergunta inevitável é: porque por aqui Bebel vende pouco? É muito esquisito o que nosso mercado interno faz com artistas desse tipo. As forças estranhas que o regem parecem fazer desdém daqueles que atingem sucesso internacional, como se isto fosse um tipo de fraude do mundo artístico. Pouco se diz da importância desses que ultrapassam fronteiras, e com talento e obstinação vão levando nossa cultura ao mundo. Quase como se os nossos artistas “internacionais” fossem “de araque”, sem jamais representar, verdadeiramente, o que temos de melhor. É claro que isso acontece às vezes. Mas, por favor, separemos o joio do trigo.
A portuguesa Carmem Miranda usou aquele “falso” estereótipo do povo brasileiro, que todos conhecemos. As Bananas na cabeça: que figura pode ser mais patética? Os “sambistas” brancos com camisas listradas... A coisa do Zé Carioca... Enfim. Aquilo tudo que não era Brasil, fora até bem aceito pelos brasileiros sem muita reclamação. Carmem Miranda e, vejam só, o “implantado” Zé Carioca foram os nossos embaixadores culturais na época da Segunda Guerra. Engolimos aquilo por falta de alternativa. Aquele Brasil inventado pelos norte-americanos os nossos compatriotas acataram com gratidão de mendigos.
Com a Bossa Nova o diálogo inter-cultural se estabeleceu de forma bem mais aceitável, autêntica e, porque não dizer, digna. Se a música de Tom Jobim de João Gilberto não era exatamente “tradicional”, era boa. Melhor inovar com classe do que com frutas na cabeça. Bom ainda lembrar que há muitas vezes uma inocência com o uso da palavra “tradicional” – o processo de influências culturais, inter-relacionando culturas e criando novas formas, se dá há milênios. Uma simplificação grosseira bastante usada, mas não irreal, explica que o “gênero” bossa nova foi uma fusão do nosso samba com o jazz americano. E se foi? Que seja. Tom e João não foram tradutores do Brasil. Foram reinventores. Na receita de sua nova música eles usaram o bom da nossa terra, numa forma o menos estereotípica possível. A Bossa Nova é, até hoje, o nosso produto cultural de maior sucesso no quesito exportação. Depois da turma de Tom Jobim, um ou outro se aventura vez em quando em levar nossa música ao exterior. E um ou outro com certo êxito. Êxito que é fracasso se comparado com o que fizeram Tom e João.
No segundo país em exportação musical (é claro que, embora vices, perdemos de cem a zero pros primeiros, os estadunidenses) a “embaixadora” da vez é mesmo Bebel Gilberto. Seu novo disco Momento – na verdade lançado em agosto do ano passado – é uma boa síntese da qualidade e das potencialidades da música brasileira. O velho e o novo estão em Momento. O “bom” velho e o “bom” novo, diga-se. Esse poder de síntese da cantora e compositora pode ser comprovado nas econômicas 11 faixas do disco. Em poucas canções o que se mostra é uma grande variedade de ritmos e sonoridades. Tem violões executados ao estilo do pai, João Gilberto. Tem “ambient music”. Tem eletrônico. Tem influência cubana. Tem samba, obviamente. Tem, enfim, tudo que um disco precisaria para ficar insuportavelmente heterogêneo e perdido. Mas em Momento Bebel Gilberto conseguiu o quase inatingível paradoxo de estabelecer a unidade dentro da diversidade. O disco soa inexplicavelmente coeso.
Filha de João e da Cantora Miucha. Sobrinha de Chico Buarque. Parece ser mesmo uma marca da família a inovação musical, vertente que a moça explora naturalmente. Se a “exportação” de Bebel Gilberto poderá surtir efeitos tão positivos quanto a de seu pai, só o futuro responderá. Se ela será uma nova Carmem Miranda – não falo aqui da admirável mulher Carmem Miranda, mas sim do fenômeno Carmem Miranda, que distorceu, graças a Hollywood, a imagem da mulher e da cultura brasileira –, espero que não: é preferível uma discreta e autêntica elegância a uma extravagância “industrial” cheia de terceiras intenções.
Como é bom saber que o Rio gerou Bebel Gilberto; que o Brasil tem nela e em algumas outras boas cantoras a possibilidade da eterna redenção de nossa grande música; que Nova York tão bem tenha acolhido nossa cantora morena, “repassando-a” para o mundo – ainda que sob signos suspeitos de word music ou new bossa. De toda forma, sua boa música faz bem para o Brasil, assim como para os ouvidos globalizados e curiosos mundo afora. E Bebel vai tranqüila e com seu estilo autoral e único, reciclando sentimentos, conceitos e sons com sua música calma e sofisticada.
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As faixas de Momento:
1. Momento, a faixa-título, é uma deliciosa canção com sutis sons eletrônicos e letra com tom melancólico, resolvido com a frase “... vem viver esse momento”.
2. Bring back the love, é a faixa mais eletrônica do disco. Como na primeira canção, há algo que lembre Sade. De certa forma, Bebel pode ser a nossa Sade – uma cantora do hemisfério sul a conquistar públicos internacionais com seu suingue e seu jeito doce de cantar. Bring back the love tem a participação do grupo nova-iorquino Brazilians Girls. Na gravação perfeita, ouvimos ao fim a cantora imitando sons de tamborim com a voz sussurrada. Algo de extrema sensualidade – só ouvindo pra saber o que estou dizendo.
3. Close to you. Mais uma faixa eletrônica de extremo bom gosto. Letra parte em inglês, parte em português – coisa que ocorre em mais de um momento no CD.
4. Os novos yorquinos tem no título uma clara referência ao grupo Novos Baianos, que fez nos anos de 1970 algo como uma mistura de Bossa Nova e Tropicália, tendo eles sempre um olho na América do Norte. Bebel, que, além dos olhos, tem os pés lá e que freqüentou ensaios do grupo quando ainda era uma menininha, dá a esta linda canção muito significado.
5. Azul é uma bossinha de estilo moderno – no melhor sentido.
6. Caçada é uma música menos conhecida de Chico Buarque. (Re) apresentada aqui com um primoroso arranjo que traz tambores e flauta, como em uma banda de pífanos. Um destaque absoluto do disco, não só pela gravação arrojada, mas também pelo erotismo lírico da letra de Chico.
7. Night and Day é mais uma regravação. O clássico de Cole Porter aparece num arranjo quase minimalista de violão e voz, com metais a partir da metade da gravação, e discretíssima percussão ao final. João Gilberto faria mais ou menos assim.
8. Tranqüilo faz lembrar o som feito por tradicionais bandas cubanas. O autor Kassim (produtor carioca) escreveu uma letra muito boa. Um achado. Dessas que parece que já conhecemos há muito, muito tempo. Mas, será que já não a ouvi mesmo? Digna de nota é a participação da Orquestra Imperial, que imprime uma marca à música.
9. Completam o disco: a deliciosa e completamente inovadora Um segundo;
10. Cadê você – outro grande destaque, que pode ser tocada em qualquer rádio brasileira – e , por fim
11. Words, canção que tomou de Bebel três anos pra ser feita, registrada finalmente com apenas voz e violão.