O Poeta e o Militar
Era bem magro, moreno e com olhos espantosos, cor-de-violeta.Tendo estudado em colégio de padres fato que detestava, a família não sabia exatamente porque, tinha muita cultura geral, um embrião de revolta dentro de si e muito bom “Português”.Com todos os jovens, naqueles anos 60, fazia, de contestar,uma Arte.No seu caso pessoal, ser filho de um militar que deixara a família inteiramente aos cuidados da mãe,uma professora muito valente , provocara, provavelmente,um maior travo em relação ao militarismo, o que não acontecia com a namorada, filha de pai dedicado, que acabou deixando para traz seus direitos adquiridos por cursos e formação, de ir até major, como telegrafista, tão logo foi promovido a tenente:tendo ido servir em Belo Horizonte, voltou tão estressado, que teve de internar-se no hospital do Exército, passando dali para a reserva.Anos mais tarde, a filha, lera, nas entrelinhas, que ele vira algo insuportável e desconfiava que fosse alguma tortura.Como era totalmente avesso à volência-nunca batera em um filho, uma vez ficando sem dormir porque pisara, sem ver, em um pintinho.deixava a mulher criar crianças e bichos, sempre assobiando baixinho.
Nasceram poetas, ele e ela, viviam escrevendo, no caso dele, uma poesia de cunho social, sonante quais marteladas num pedaço de pinho.E compunha.Abraçado ao violão, sentia-se feliz.Padecia de carência,tendo sido criado sem o genitor.Tivera bronquite crônica e como agora fumava, um pigarro penoso era resultado do cigarro eternamente pendurado nos lábios finos e bem traçados
Na pré-adolescência,mandado pela mãe cujo salário era muito pequeno, saía pela ruas de S.João Del Rey a catar estrume, trabalho que muito o constrangia...Imagino o poeta-menino, a querer olhar para o Alto e sonhar, enquanto abaixava-se para recolher o esterco...talvez com receio, de na linda cidade pequena, encontrar conhecidos....Colocado para estudar no tal seminário, acabou por fugir-sabe-se lá porque-de bicicleta.
Em Juiz de Fora, arranjou trabalho, tirava notas muito altas, quase sem estudar,sendo desse tipo de pessoa que parece apreender o mundo do nada...Signo de Piscis:um para cada lado,multiderecionado, dotado de ironia fina e muito coração.O que mais gostava era discutir com os professores.
E de repente, estava a participar das secretas reuniões onde a juventude da época, vivendo na cidade de onde partira a famosa “Revolução” de 31 de Março, escrevendo panfletos.O irmão, mais novo que ele,ajudava a distribuir os libelos contra a Ditadura Militar.Estava ficando homem, inquieto, sensual, a extravasar suas necessidades em poesias e falas que faziam calar os mais velhos, em especial os literatos da cidade que respeitavam-lhe o discurso.Mas os maduros conseguem segurar-se,são mais prudentes, exceto os verdadeiramente revolucionários.
Foram ambos presos.O caçula a distribuir o que o irmão escrevera.Passou dois anos convivendo com a tortura.Mas o poeta,foi salvo.Há Anjos que gostam de Poesia autêntica, por certo.
Tendo sofrido dois “telefones”, -pancadas de mãos espalmadas-que lhe deixaram os ouvidos retinindo (o que o afetou para sempre), quedou-se a um canto,escorregando ao chão... o temor de perder a preciosa liberdade, a preocupação com o irmão a doer mais que as pancadas...Brotou-lhe então, qual a im/probabilidade da planta que abre caminho entre fissuras de asfalto quente e irrompe, verde, para a luz,um poema.Escreveu-o com a caneta que haviam deixado em seu bolso, num guardanapo ou coisa que o valha...Afinal,um papel em branco, não deve ter causado nenhuma desconfiança nas autoridades...Irrompem os versos, e ele os derrama, parindo sua perplexidade,deixando a alma embalar-se na canoa da lua e aproveitando para banhar-se naquele luar a permitir que o dourado de seu Sahashara, o chackra da cabeça o conectasse com as coisas do Alto e o banhasse na claridade protetora.Assim, enquanto escrevia,permitira, as Musas,que descessem seus protetors,amparadores espirituais, e o consolassem.Onde estaria o irmão?O que estaria passando?O que estaria dizendo?Doía o corpo, os tímpanos estourados, o peito apertando-se como foles que haviam perdido a elasticidade...Sem ar, mas semperceber o lentoprocesso de expressão e reação corporal, preocupava-se com a mãe.Por causa da bronquite,ela cuidava dele mais que aos demais-gerando até um certo ciúme na irmã nascida antes dele:”Mamãe estraga o...”
Escreve e está relendo os frutos da ansiedade, do temor, quando entra um oficial.Quer ver o que escreve.Tudo que se escreve é suspeito, nessa época onde o marrom do cáos em nada lembra a cor generosa da terra:é apenas uma mistura louca de todas as cores colocadas na Palheta da desconfiança, gerada pela intransigência quanto à liberdade de querer...de fazer...de dizer..de ser...Com o braço trêmulo e o coração no peito disparado, como uma rajada de metralhadora desgovernada,independente da vontade, entrega a poesia.
E então, as notas de música em sinfonia perfeita, descidas de outra dimensão, envolvem em espiral o Major.É poeta, como o quase menino ali ao chão .E chora.
Então ele se vê na rua.O Major o põe no olho da rua.Na boca da Liberdade.Salvo pela Poesia.
Se alguém sabe de quem mais tenha sido libertado por ser poeta, poeta de verdade, desses que nasceram para falar bonito,conte-me,pois só conheço essa história.Eu, a namorada e antes colega de redação.A também filha de militar, mas outro tipo de pessoa...Mais tarde, esposa...Freqüentávamos os mesmos grupos, tínhamos os mesmos amigos(*)
Mas o casamento que tivera os melhores augúrios-poetas, cronistas, trovadores, jornalistas e amigos vieram de muitos lugares para assistir ao enlace-nos jornais da época da cidade em colapso, não teve como dar certo:como a alma sensível do moço bonito de gregas feições e olhos azuis- violeta podia serenar, considerando-se culpado, sem jamais o afirmar,por estar do lado de fora e o irmão dentro do quartel, sendo proibido de viver a liberdade preciosa?Pouco antes de meu casamento, magérrimo, meu cunhado foi libertado, mas...o poeta já era um alcoólico, por não ter sabido endurecer-se suficientemente...
Registros de perda-o pai que abandonou a esposa, o irmão sem sol naquela Juiz de Fora fria e caótica-o fizeram desenvolver delírios celotípicos:os ciúmes eram completamenente absurdos.E eu,imatura, sem nenhuma estrutura para analisar, como hoje, seu inferno particular...Separamo-nos e hoje, nos damos bem.Continuo a admirar o Poeta Maior que um dia comoveu um militar pela força da palavra poética.
Mas, na minha vida,jamais esqueci de agradecer,silenciosa, a um poeta vestido de verde oliva, que não pôde suportar a idéia de ver outro poeta aprisionado como um pássaro na gaiola.Graças a ele, um poema concreto, àquela época em que as moças se casavam para ser mães, pôde ser elaborado de nós dois:meu primogênito, que também escreve e compõe...
(*)À época, uma necessidade, reunimo-nos no Núcleo Mineiro de Escritores ,o NUME,para criar códigos secretos, até nas poesias então chamadas“bestealógicasum “must”, sabendo que ali estavam infiltrados muitos espiões militares, membros do DOPS-sendo poetas, talvez até usufruindo do ambiente ,estes ali relaxavam, pois os trovadores e escritores, artistas,jornalists,poetas de poesia concreta e sonetistas,os tratavam muito bem, como se sequer percebessem o corte de cabelo militar, a postura... Talvez porque a Poesia tenha como missão maior, unir os corações,independente de crenças, raças, convenções...
Belo Horizonte,25/07/03
Clevane Pessoa
N:Se quiser sabe mais sobre Os Anos de Chumbo,escreva-me:
clevaneplopes@yahoo.com.br