DE PEITO ABERTO
DE PEITO ABERTO
“Quanto mais desencontros os parceiros podem suportar, mais podem se encontrar no amor?” (Ana Suy)
Amar é o exercício de preencher vazios, não aqueles que em nós já habitam e do qual tínhamos consciência, mas aqueles que sequer suspeitávamos. São vazios criados pela inabilidade, pelo reconhecimento de não mais saber ser sem um outro, esse outro que agora ganhou identidade, mostrou sua face amena, que suspendeu a urgência das horas. O amor nos confere dignidade, mesmo no momento da indigência, nos acessos de carência, nos quais se mendiga o absurdo, por sabermos que o muito pedido deve ser espontaneamente dado – não se deve clamar por ser amado nem se forçar a amar.
Adélia Prado disse: “tudo o que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória imperecível”. A poeta sabe das coisas, tanto as sagradas quanto as mundanas. Porque o amor é essa simbiose, essa ambivalência congregadora de sentimentos vários. Por isso, o amor é atemporal, não há como mensurá-lo, a memória nos trai e atrai para a representação do mundo concreto e abstrato. O impalpável amor do qual ora temos certeza, ora nem tanto...
Então vamos a Drummond que afirma ser “este o nosso destino: amor sem conta,/ distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,/ doação ilimitada a uma completa ingratidão,/ e na concha vazia do amor a procura medrosa,/ paciente, de mais e mais amor./ Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa/ amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita”. Sede infinita, porque o desejo entre os amantes nunca se realiza e sempre se renova. Assim deve ser, pois não se conquista apenas uma vez. Cada movimento do casal que almeja permanecer junto é pela sustentação do amor. É o de novo, novo.
Rubem Alves acreditava que o amor se faz a partir do silêncio: “O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: ‘Se eu fosse você’. A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção.”
Preste atenção, então. Escutar é amar. O tempo empregado representa a disposição que se tem para viver o amor. No ato de silenciar, acolhemos a palavra do outro. Ao escutar, abraçamos até o silêncio. E o silêncio, diria o saudoso cronista, só é suportável entre os amantes. O amor nos convida a refazermos nossas estruturas. É o tecido cuja trama se envolve com várias contrariedades. Nele retiramos os excessos que nos impedem de caminhar na direção do coerente, ainda que desestabilizados.
E se fazem juras de amor. E há amores de todas as medidas e ordens, em que não se deve procurar a continuidade de si, mas perguntar-se: “quem é este que me quer e qual o porquê de sua avidez por mim?”. Então, nos submetemos, pois queremos nos sentir aceitos e ver o outro como um ser acolhedor. Por isso, desamar é retroceder a uma estaca que já não pode ser zero, como uma forma de experienciar um luto. É a morte de um sentimento cujo corpo não queremos sepultar. A aceitação da pessoa amada é uma forma de nos reafirmarmos enquanto sujeitos e, quando esta se vai, nos vemos novamente sem identidade.
Sempre soube da precariedade do amor, talvez por isso tenha-me feito poeta, para que em cada verso eu clamasse, constantemente, por uma reafirmação. Felizmente não me resumo a palavras. Sou um romântico incurável. Porém, se antes padecia de elaborar perdas de modo antecipado, hoje viro e reviro o amor na vã tentativa de querer vê-lo por todos os ângulos.
Sei que o amor é o lugar para onde queremos voltar. É o melhor lugar do mundo. É onde queremos fazer morada. Repousar. Pedir trégua. É a liberdade que é pouco, porque significa bem mais, um horizonte em 360 graus, como um farol, uma bússola louca que nos leva a lugares inimagináveis. Nesses encontros e desencontros, a gente pode até se perder de vista, mas o peito se mantém aberto para receber alguma luz.
Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.
(Texto publicado no jornal A União em 14/06/2024)