As pessoas que entendem do que dizem e as pessoas que de nada entendem.
Acredito eu que todo bípede implume de trinta e dois dentes e com mais de trinta anos de idade já tenha se deparado com criaturas pretensiosas que acreditam que sabem deste e daquele assunto mais do que toda e qualquer pessoa simplesmente porque frequentaram, durante uma vida escolar inteira, nas melhores escolas do universo, aulas de professores renomados, e leram livros de autores famosos, e, depois, já de posse de um diploma, estudaram, durante trinta anos, os assuntos cujos fundamentos haviam adquirido nos bancos escolares. Penso eu que tendo-se a infelicidade de se deparar com tais (escrevi "com tais", e não "contais") criaturas, os bípedes implumes na face delas viram o nariz empinado presunçoso, o arzinho de superioridade desdenhosa, e delas ouviram palavras de desprezo, não raro vazadas num estilo polido (e porque polido mais ferino, mais agressivo, mais incivil), por toda e qualquer pessoa que não tenha biografia escolar de iguais páginas, e tampouco se dedicado a ler os livros que elas leram. Escrevi que acredito que todo ser humano já tenha se deparado com tais ("com tais", e não "contais") criaturas. Atenção: escrevi "criaturas", e não "criatura". E por que o plural, e não o singular?! Por que são milhões tais criaturas, e todo descendente de Adão e Eva que já apagou mais de trinta velas (as do próprio bolo de aniversário, e não as de bolos alheios) já se deparou, suspeito, com um bom punhado delas.
O que me chama a atenção, e talvez já tenha chamado a de trilhões de outros seres aparentados com os chimpanzés, gorilas, orangotangos, saguis e similares, é a diversidade de visões-de-mundo de tais criaturas.
Conto uma história: João foi à escola, e à faculdade, estudou com o professor Harold, e, durante os trinta anos seguintes, leu os livros A, B, C. José frequentou a mesma escola, a mesma faculdade, estudou com o mesmo professor, e leu os mesmos livros durante os mesmos trinta anos. Um dia, por vias desconhecidas, João e José encontram-se numa academia, e entabulam conversa acerca do assunto que ambos estudaram com o professor Harold e ao qual se dedicaram durante trinta anos. A conversa vai animada até que uma divergência insignificante em um certo ponto fá-los principiar uma sequência de argumentos que num roldão vai impeli-los para direções diametralmente opostas, João a chamar José de imbecil, desocupado, burro e de outros epítetos carinhosos, e José a revidar com alcunhas equivalentes. Resumo da ópera: duas horas depois do início da fraternal conversa, denunciados por desordem pública ambos os dois estudiosos vão ter à delegacia onde vivem dois dias a mofar sem ver o Sol nascer quadrado porque nos escritórios nos quais policiais os largaram não há janelas.
A história que contei, eu sei, não tem um tom dramático, nem trágico, nem heróico. Enfim, não tem sal, nem açúcar. Eu poderia adicionar-lhe uns ingredientes que o fariam palatável ao leitor, mas fica do jeito que está.
Embora insosso, o conto serviu-me para ilustrar o que penso: por mais bem intelectualmente preparado que seja uma pessoa (principalmente se dedicada às chamadas disciplinas humanas), ela nada mais tem a dizer acerca do que estudou, nem depois de estudar durante dois mil anos, do que uma opinião, que em muitos casos vem num pacote luxuoso. De qualquer forma, prevalece a filodoxia. Todos somos, em última análise, filodoxos: gostamos de falar, melhor, tagarelar, acerca do que pouco, ou nada, sabemos - até os estudiosos são assim, conheçam ou não a sua vã ignorância acerca dos assuntos que, entendem, mais acreditam conhecer. É claro que este e aquele bípede implume tem mais acurácia nas suas observações, e tal, direi, superioridade, se deve ao melhor talento para filtrar as informações que aos vagalhões lhes chegam; mesmo assim, é prudente se considerar que dentre as informações que lhes participam da visão das coisas talvez existam muitas que estejam erradas, que não procedem.
Este meu comentário inspiraram-mo celeumas, que raiam ao absurdo, ao surreal, ao grotesco, ao patético, entre gentes aparentadas aos primatas, acerca da política nacional, a nossa, a brasileira, e a internacional, uma e outra dentre elas, pessoas que exibem os seus milhões de títulos universitários, a ofenderem, raivosamente, e sem contarem com a graça de um estilo literário primoroso, conquanto se tenham na conta de mestres da palavra, e também do humor, o interlocutor se entendem ser este um ser que não frequentou escola, faculdade, não conhece o filósofo Fulano e o sociólogo Beltrano e o jurista Cicrano, e tampouco estudou o tema desde antes de Pedro Álvares Cabral pisar em terras que viriam a pertencem ao Brasil. Sempre que leio e escuto gente a tratar de política - a nacional e a internacional - atento para o argumento dela, vejo se ela concatenou as idéias, e quais informações inseriu no corpo do argumento, e quais são as fontes de informações que ela citou, sempre ciente de que ela não tem acesso aos documentos que se escrevem no Kremlin, na Casa Branca, no Palácio de Buckingham, em Zhongnanhai, em Rashtrapati Bhavan, e nos escritórios do MI-6, e da CIA, e da FSB, e do Mossad, e etecétera e tal, onde os poderosos decidem os rumos da história. E é o que se planeja, e se decide, em tais prédios o que importa: o resto é resto, opinião apenas, e nada mais do que opinião, mesmo que venha embrulhado, por garbosos estudiosos e eruditos, com diplomas acadêmicos floreados a ouro.
E não se pode ignorar, também, que muitos estudiosos, acadêmicos, intelectuais falantes - não poucos deles a falarem cada qual mais do que a sua boca - estão a defender interesses, nem todos nobres, dos ricaços que lhes pagam as contas, e para fazer juz à fortuna que recebem têm de mentir à beça, sem se ruborizar, de cara lavada.
E aqui ficam estas minhas palavras para os poucos bipedes implumes que irão lê-las.