A Teia da Aranha
A Teia da Aranha
A vida existe para o quê? Um organismo vivo existe para o quê? Para movimentar-se, copular, procriar, fazer coisas? Vida e existência, o que são isso afinal?
O próprio vocábulo “para que” é utilizado em todo contexto para designar uma finalidade, um propósito. A lógica da conjunção para que, a fim de que, leva o próprio pensar a procurar uma finalidade. Aqui vemos um reflexo duplo da palavra: o “para que” existe para que de verdade? O “a fim de que” existe para quê? Observamos que justamente a finalidade do para que é construir uma finalidade, um propósito. A finalidade do para que é originar, é criar uma finalidade. Este é o intuito do “para que” em todo contexto em que o pensamento o insere: querer encontrar ou construir uma finalidade. Mas antes de tudo, o que é o “para que” mesmo? É uma conjunção, é um vocábulo, é um termo construído pela consciência-linguagem humana. Em torno do para que já está contido todo um conjunto de lógicas já predeterminadas, preestabelecidas que irá conduzir o pensamento a um conjunto de idéias já institucionalizadas.
Existe vida. Existe um universo. Para que existe a vida? Para que existe todo um universo? Nós construímos a vida? Nós criamos o universo, e tudo o que há nele? Não, naturalmente que não. Mas nós construímos o “para que”, com a finalidade de fabricar uma finalidade.
Este exemplo nos revela o perigo que gira em torno das palavras, dos vocábulos, da linguagem. Só porque existe a palavra alma e espírito, milhões de pessoas se agarram a estes vocábulos e as idéias contidas e vinculadas a eles, adaptando e modificando suas maneiras de agir e de ver a vida, baseados na certeza convicta nestas duas palavras. O vocábulo “espírito” já designa "uma idéia” em nossa mente de algo imaterial, indestrutível, imortal. Lembremos do filósofo Sócrates, que tinha tanta convicção na palavra “alma”, e na idéia de que esta palavra designa um “eu escondido” dentro do corpo humano que é imortal, convicção tão forte nesta palavra e na idéia que gira em torno desta palavra, que Sócrates não temeu tomar de bom grado a cicuta imposta pelo tribunal ateniense.
A própria existência da palavra “idéia” já nos leva a crer nela, e a procurar desenvolvê-la. Qual é a idéia de existir “uma idéia”? Qual é “a idéia” da própria idéia? É querer construir uma idéia. E por que queremos construir uma idéia? Por que queremos “isso, ou aquilo, ou viver, ou não se casar, etc”? A finalidade da expressão “por que” é justamente buscar uma resposta, é encontrar uma resposta, ou inventá-la. Vemos que no momento em que a pessoa utiliza o vocábulo por que, ele já vem acompanhado da lógica de existir uma resposta, ou de querer uma resposta, ou de se criar uma resposta, uma explicação.
Estão percebendo as armadilhas que as palavras nos armam em cada momento?
Eu olho para uma coisa qualquer, como por exemplo uma coisa que eu chamo de árvore. Antes mesmo de ver “a árvore”, eu enxergo primeiro não o ser que corresponde a esta palavra, eu vejo primeiramente a palavra árvore e só depois eu vejo em si “a árvore”. Vemos em todas as coisas o reflexo narcisista do ser humano, imagens sonoras que inserimos em todas as coisas, para que nos sejam familiares, identificáveis, e que possam nos refletir algo de nós para nós: o reflexo de uma das tantas partes de nossa consciência.
Este é um dos outros perigos das palavras: pensar numa simples “palavra” traz junto a si numerosas imagens que nós atribuímos a palavra pensada, como se aquela palavra pensada tivesse nascido daquele jeito, daquela forma, com aquelas características natas. Mas não o é. Ela foi forjada para parecer assim, para ser assim, para causar esses efeitos típicos em quem a pensa, e em quem a ouve.
Eu penso. Mas o que é este “eu”? É um pronome, é um verbete, produzido para se referir ao verbo utilizado que neste caso quer apontar para mim.
EU. “Eu” o quê? Aniquilemos este eu, e as formas verbais ligadas a este eu. Perguntem agora: quem tu és? Silêncio. Um grande silêncio ecoou. Não houve resposta. O próprio “quem” já é construção hipotética.
A vida, o mundo, as pessoas, as palavras, tudo isso são “fatos”. Mas o que é um fato? Fato é “tudo aquilo que é real, que tenha sua veracidade reconhecida”. Note meu prezado leitor que o vocábulo “fato” está preso a este significado, e no momento em que se diz alguma coisa, o indivíduo que expressa algum tipo de argumento ao terminar de falar utilizando a expressão “isso é um fato,” que idéia este vocábulo irá fazer surgir na consciência de quem o ouve? A idéia pré-concebida de que o que foi proferido é algo “real, é evidente, veraz, consistente”.
Veja como as palavras nos empurram para as placas de suas lógicas já inseridas e predeterminadas em cada uma delas.
A vida, o mundo, as pessoas, as palavras, nada são fatos, são palavras, como o próprio “fato” não é um fato, é apenas uma palavra.
O “fato” de existir fatos!?! Quem reconhece isto ou aquilo como sendo “um fato”? É o próprio fato, ou não será o homem com seu intelecto interpretativo e carregado com todas as lógicas de idéias já algemadas nas palavras?
O fato nunca é “fato”, o fato é interpretado como sendo um fato. E a própria noção do verbete “interpretar” já nos coage a pensar que algo pode ser “decifrado, analisado, compreendido”.
E por que algo pode ser compreendido? Por se supor que neste algo reside coisas veladas, ainda encobertas, e que podem ser desvendadas e respondidas? Mas “compreender” já não nos empurra a pensar que algo nos “esconde ou contém informações” que podem ser extraídas?
Uma pedra existe, ela pode ser “analisada”, logo ela pode ser “compreendida”. Uma flor, um pássaro, um germe, tudo o que existe pode ser analisado, logo também tudo pode ser compreendido, decifrado.
A “compreensão” crida pelo pressuposto que “tudo é analisável, logo pode ser..” E como funciona a compreensão do ato de compreender? Compreender a compreensão de uma interpretação interpretada de um fato já digerido como sendo “fato”.
A linguagem, as palavras, a loucura da lógica e do ilogismo, as invencionices, ficções fabricadas e cridas como sendo fatos, o espelho da realidade frutos da hipótese de existir irrealidade, os jogos da mentira e da verdade, juízos institucionalizados de valores, de certo e de errado, justo ou de injusto, coisas tidas como coerentes e outras tidas e cridas como absurdas, o paraíso e o inferno, todas essas coisas e suas derivações são a teia da Aranha; nós, nós somos as moscas curiosas presas nesta teia.
Mas quem ou o que será a Aranha a caminhar pela teia, com o intuito de nos consumir? Será uma aranha metafórica, simbólica, ou sonoramente real?
Gilliard Alves