Dos amigos e bajuladores de toda hora
É curiosa e risível a mania que a maioria das pessoas tem em se vangloriar de ter muitos amigos. De duas uma: ou existem seres humanos com grande capacidade de comprar pessoas, ou muita gente anda mentindo por aí. É ilusória a constatação de que ter muitos amigos é possível. Na verdade, é ótimo tê-los, mas não é excelente achar que existam em demasia. Mostre-me muitos amigos que lhe mostrarei, igualmente, muitos bajuladores. Plutarco (45-125dC?) já comentava que homens e mulheres podem até ter muitos amigos, mas amigos autênticos são poucos. Logo, por inferência lógica, posso pensar que amigos de verdade sempre serão raros, principalmente, nos momentos em que mais precisamos deles. Creio que poucos - ou porque vivem em um mundo de ilusões ou porque andam adquirindo “amigos” por vias escusas - vão discordar. Mas pouco me importa, a vida e os fatos estão a meu favor. Lembro como exemplo o caso do Cristo, traído por poucos e por muitos, tanto por amigos, como por inimigos e, de quebra, na esteira da luta política e religiosa na época, ainda foi preterido em favor de Barrabás. Para os que se esforçam por permanecer nos ensinamentos de Cristo: burrice maior inexiste: pecadores somos todos, mas contra certos fatos não existe argumentação. A mente humana é um complexo de pulsões recheadas de mecanismos que, inevitavelmente, a despeito do altruísmo barato, leva os indivíduos à lei do menor esforço. Se o “amigo” pode ajudar na conquista de melhores lugares na vida, nada como criar redes ou o que os administradores de plantão chamam, nos dias atuais, de networks.
Esta é a vida. Pensamos que temos amigos, mas espere acontecer algo, uma doença, dívidas, desastres e fatalidades para perceber que poucos ficarão por perto. Norbert Elias (1897-1990), sociólogo alemão, salientou que os moribundos e os idosos nos lembram a doença, a envelhecência e a morte e não por acaso que nos afastamos deles. O mesmo penso em relação às outras relações e adversidades da vida. No mundo dos indivíduos não existe seio ou o colo da mãe. Há muito a perdemos e procuramos em arautos transvestidos de padres, pastores, professores, médicos, etc, o pai que jamais voltará. Somos na verdade seres de carência com valores a desejar e um conjunto de princípios civilizatórios a construir. Terminamos com a possibilidade do cuidado e acabamos com a alteridade e, se tivermos “amigos” para isso, melhor ainda. Neste caso, nada como lembrar Iago, o bajulador de Otelo - o bravo mouro da obra do dramaturgo e poeta Shakespeare (1564-1616) -, o qual matou Desdêmona por ciúme e pela crença no antes “amigo” Iago. Este era dos bons, bajulava o mouro, tagarelava sobre sua força de caráter, sua potencialidade, coragem e integridade. Ao mesmo tempo ele envenenava o coração de Otelo. Ingênuo e banhado pela crença cega no amigo, Otelo cometeu o maior dos pecados: o assassinato do amor. Amor cortês é verdade, mas não deixa de nos ensinar que, por trás de muitos “amigos”, estão Iagos. E não são poucos. Se acreditasse nas idéias de Thomas Hobbes (1588-1679), o filósofo inglês do medo, apostaria certamente nesta possibilidade.
No entanto os amigos existem e o que seria a vida sem eles. Mario Quintana (1906, 1994), poeta gaúcho, disse que a "a amizade é um amor que nunca morre”. Coisa mais linda e digna de respeito é impossível. Concordo com ele e esse aforismo não deixa de nos lembrar que, por definição, a natureza humana, não é capaz de amar à todos. Se temos dificuldades de amar, inclusive o próprio self (eu), imagine um exército de amigos. Logo, somos capazes de doar amor somente a alguns e este amor, concordando com Quintana, “nunca morre”. Se morreu, é porque não existiu. E observe que os amigos dizem o que, em geral, não desejamos ouvir: é ele quem vai falar que estamos exagerando na bebida, estamos gastando mais do ganhamos, que nosso hálito não está nada bom, que nossa companheira nos traiu, que nosso texto escrito durante um bom tempo não é lá essas coisas, e que estamos vegetando ao boicotar o amor, as relações com a mãe, com o pai, no emprego, na igreja e na vida.
Penso que amigos não somente falam, mas agem e a distância do falar para o agir é bastante curta. Não é por acaso que ele pega o telefone e nos liga, nos procura e enfrenta os predadores e bajuladores que estão ao lado. Como a luta é grande, pode esperar que poucos indivíduos têm a coragem de perseverar ao lado no momento da grande batalha.
Talvez ande exagerando nas palavras, mas nada contra o prejuízo das reflexões. É bom deixar evidente que o amigo não magoa e sequer goza de nossa eterna mediocridade. Ele nos protege, por isso não se deve cultivar a preocupação em relação às brincadeiras e "caricaturas" que, várias vezes, os amigos fazem da gente. Se eles fazem é porque gostam e não porque acham que suas mãos devem se aquietar, que sua boca deve falar um pouco mais baixo ou se calar, ou que não suporta o seu “jeito de ser”. Em primeiro, é preciso deixar claro que só imitamos ou caricaturamos os indivíduos que nos afeta e/ou que nos dão afeto. Dito de outra forma, criticamos somente aqueles que gostamos ou que, na verdade, desejamos como amigos e irmãos. Não brincamos com seres humanos (e também animais) que não gostamos ou que se afastam de nossas palavras e mãos. Estas jamais serão amigas, mas serão potentes predadores e bajuladores. Neste sentido, todo cuidado é pouco, e é melhor que estas pessoas se afastem mesmo, haja vista, e passo para o segundo ponto, é óbvio que homens e mulheres não toleram a diferença. Nas relações sociais forjadas na sociedade dos indivíduos, em tempo de sociedade do espetáculo, a intolerância com a diferença é um dos grandes problemas a serem enfrentados. Não se assuste, neste caso, se perceber indivíduos (amigos e inimigos, conhecidos e desconhecidos) disputando coisas insignificantes ou mesmo significativas, como o amor e o poder. Estamos longe do paraíso cristão, no qual amamos os outros como a nós mesmos. A vida não é assim: não existe esse mundo romântico no qual teimamos em acreditar. Mais do que nunca, em tempos de sociedade excludente, é praticamente impossível confiar na tolerância e, por extensão, na existência de muitos e muitos "amigos". Diante do grande número de bajuladores, aparentemente, é melhor o cuidado. Amigos aparecem e estão nos momentos nos quais podem e devem se aproximar para melhor conhecer e aceitar nossa individualidade tal como ela está apresentada ao mundo.
Infelizmente, é infantil não acreditar que os indivíduos são seres de interesse. Interesses ideais e materiais e para perceber este fenômeno aumente o seu dinheiro ou o seu poder e terá quantas pessoas quiser ao lado. Essa é a realidade, homens e mulheres se afastam ou se procuram porque desejam ou querem algo que o outro, provavelmente, pode oferecer ou ceder. Em caso negativo, no campo das relações da dádiva ou do que os românticos chamam de altruísmo, os indivíduos se afastam, simplesmente porque já exercitaram a perversidade, o sadismo, a inveja, etc. Em tais circunstâncias, é bem mais racional apostar na solitude, esta capacidade humana de realização interior, um estado de espírito de silêncio e equilíbrio entre mente e coração, pois daqueles “amigos” é certo de que não sentiremos falta. Eles fazem parte de relações efêmeras e somente na falsificação ou na hipocrisia é que permanecem por perto. Étienne de La Boétie (1530-1563), filósofo e escritor francês, afirmava que companheiros são amigos e não cúmplices, logo preservemos os poucos amigos, pois eles ficam. Os idiotas, nas primeiras adversidades, logo se vão. E, lembrando ainda de Plutarco, cuidado com os bajuladores, a vida está repleta dele e, em tempos de nascimento, maturação e morte de Cristo, veja com cuidado e perceberá como Ele foi traído e ficou só e, mesmo assim, soube se manter íntegro, a despeito da intolerância coletiva, da cruz e das inúmeras caídas, sadismos e imperfeições humanas.