A sobrevivência do Brasil no Antropoceno                     

 

 

Foto: Raphael Alves / AFP

A sobrevivência do Brasil no Antropoceno

Com fronteiras sendo ultrapassadas, a necessidade de ações regenerativas se torna urgente. Não apenas para a Amazônia, mas para todos os biomas brasileiros

 

por Carlos Bocuhy

 

 

As fronteiras planetárias estabelecidas pelo Instituto de Resiliência de Estocolmo demonstram o volume de impactos que atinge os ecossistemas globais em decorrência da intensificação das atividades humanas. São os grandes indicadores da Era do Antropoceno, conceituada pelo físico Paul Crutzen.

 

A natureza tem limites, compreendida como “qualquer condição que se aproxime ou exceda os limites de tolerância (capacidade de suporte) da vida de um modo geral, como um ecossistema, de um organismo animal ou vegetal” (ODUM, 1988).

 

O rompimento dos limites das fronteiras planetárias, desenhadas por Johan Rockström, especialista em sustentabilidade global do SRT, são bastante visíveis no Brasil: mudanças climáticas, excessivas alterações no uso do solo, perda de umidade nos ecossistemas, ou até mesmo a extensa carga difusa de substâncias criadas pelo homem e lançadas no meio ambiente, como os agrotóxicos. 

 

Compreender os limites do suporte ecossistêmico é fundamental para estabelecer diretrizes para políticas globais e nacionais de proteção ao meio ambiente. Os acordos e tratados internacionais para proteção da Diversidade Biológica, do Combate à Desertificação e da Convenção sobre Mudanças Climáticas surgiram em 1992, durante a Conferência Rio 92, como reconhecimento tácito da Era do Antropoceno, em resposta da governança global frente à ultrapassagem dos limites planetários.  

 

As dimensões continentais do Brasil abrigam ecossistemas extensos, representados nos biomas da Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampas. Apresentam interconexão evidente, em sua totalidade biofísica e bioquímica. Sobrevivem em grande parte da transposição da umidade atmosférica continental provida pela Região Amazônica, por meio dos “rios voadores”. 

 

Ressalte-se ainda o extenso litoral, em processo de conectividade entre marés e diferentes biomas, que se estende da área equatorial às frias águas do Atlântico Sul, não tão frias assim nos dias atuais do aquecimento global. 

 

Considerando o cenário global, a proteção ambiental no Brasil foi pioneira. A estruturação da Política Nacional do Meio Ambiente ocorreu em 1981 (Lei da PNMA nº 6938/1981), sendo uma das três primeiras do mundo. Foi acolhida na Constituição Federal de 1988, bastante alinhada à percepção dos efeitos do Antropoceno. 

 

O País vivia então sob pressões internacionais para a proteção da Amazônia, rasgada pela rodovia Transamazônica, além dos efeitos culturais globais resultantes da Conferência de Estocolmo, de 1972. Naquela época, registrou-se aumento da percepção científica e difusão de conhecimento como resposta aos efeitos nocivos do crescimento acelerado, que apontava a necessidade de solução de problemas ecológicos supranacionais e transfronteiriços.     

 

Hoje, os mais expressivos estudos no Brasil, envolvendo capacidade de suporte ecossistêmico, se reportam à Floresta Amazônica. Continua sendo o grande objeto de reflexão sobre extrapolamento dos limites naturais, fator nevrálgico comumente designado como tipping point, ou ponto de inflexão, diante dos efeitos da intensificação predatória homem-ambiente, do enlace homem/natureza, que é a própria essência/causalidade do Antropoceno. 

 

É preciso compreender os efeitos da devastação e suas relações com o colapso de funções ecossistêmicas, do ponto de vista de emissão e sequestro de carbono, manutenção da umidade da floresta (água verde), perda intensa de biodiversidade, inclusive de espécies ainda desconhecidas e não catalogadas, e tendências de fenecimento da floresta decorrente de fatores internos e externos com maior incidência de calor e secas promovidas pelo aquecimento global, muitas vezes agravados pelos efeitos do El Niño. De forma sinérgica e cumulativa, são muitos os determinantes que aumentam a possibilidade de ultrapassagem do ponto de inflexão da floresta, levando o ecossistema a colapsar.

 

Tim Lenton, da Universidade de Exeter, afirmou recentemente que os pontos de inflexão são caracterizados por "amplificar o feedback dentro de um sistema que está ficando forte o suficiente para que possa causar uma mudança autopropulsora...uma vez ultrapassado o limiar chave, a mudança se acelera e uma transformação profunda se torna inevitável. A mudança gera mais mudança em um ciclo de autorreforço”, afirma Lenton.

 

Colapsos de ecossistemas são esperados para os próximos anos, segundo o estudo Global Tipping Points da Universidade de Exeter. Alguns tipping points globais podem potencializar efeitos climáticos, como é o caso do permafrost do Ártico. Sobre possível efeito-cascata decorrente da ultrapassagem dos tipping points, o estudo dos especialistas da Exeter afirma“Pontos de inflexão ecológicos podem levar a impactos em cascata que desencadeiam pontos de inflexão social e vice-versa. É útil ressaltar que um efeito-cascata na literatura atual é considerado uma mudança causal onde uma mudança em um sistema pode desencadear uma mudança adicional em outro sistema”. 

 

O Brasil do Antropoceno corre riscos elevados para a sustentabilidade em seus múltiplos ecossistemas. Ações regenerativas se fazem urgentes, uma vez que os pontos de inflexão não são prerrogativa só da Amazônia. Estudos atuais apontam que os biomas Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa também apresentam sinais de rompimento de capacidade de suporte. O limite dessas alterações já é detectado em vários pontos territoriais, que se expressam em avanços da desertização nas regiões do Centro-Oeste e Nordeste. A estes fatos soma-se a influência climática, que dificulta ainda mais a resiliência e regeneração. 

 

A avaliação do estado da arte e a construção de mecanismos protetivos ensejam a reflexão sobre meios de protetividade efetivos, seja de instrumentos legais e/ou de gestão. Por exemplo, a protetividade legal específica para Cerrado, Caatinga e Pampa, com status de Patrimônio Nacional, conforme já determina a Constituição Federal de 1988 para Mata Atlântica, Amazônia e Pantanal, seria extremamente bem-vinda. 

 

É possível comprovar e demonstrar que a abordagem para orientação de políticas públicas de proteção ecossistêmica tem sido insuficiente. Emerge da ótica atual de realidades isoladas, de visão fragmentada, exigindo avanços para novas chaves de conhecimento, com metodologia adequada para estabelecer respostas que compreendam fragilidades, sinergias e cumulatividades.  

 

Um exemplo disso é a gestão ecossistêmica da Caatinga, que apresenta perda de umidade e de corpos d’água, em área de semiárido cada vez mais desértica. Recente pesquisa do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba constatou a fragmentação das políticas de combate à desertificação no Semiárido paraibano. 

 

A mesma lacuna de gestão fragmentada foi apontada pelo Ministério Público Federal com relação ao Estado do Amazonas. Durante a extrema seca de 2023, apontou a necessidade de “fortalecimento da estrutura das agências de combate aos crimes ambientais, investimento em serviços de inteligência e revisão das penalidades aplicadas, além de criar novas Unidades de Conservação em áreas desprotegidas”. 

 

De outro lado, o Cerrado, vitimado por superexploração pecuária e do agronegócio, avança em processos de desertificação. Um dos exemplos mais gritantes de rompimento de sua capacidade de suporte ambiental é a vulnerabilidade hídrica regional que ameaça 300 cidades, devido ao desmatamento e à superexploração dos aquíferos para irrigação. 

 

Essas fragmentações na gestão apontam a necessidade de rever não só o planejamento territorial, mas também o aspecto mais democrático da gestão ambiental, que é o licenciamento ambiental, para compreender, prevenir e mitigar sinergias e cumulatividades de múltiplos empreendimentos, cujos impactos conjuntos e regionais não podem ser avaliados de forma isolada. Nesse sentido, a perspectiva de impacto local defendida na vigência do licenciamento municipal coloca em risco a visão ecossistêmica e a percepção da somatória dos impactos conjuntos advindos de múltiplos empreendimentos. 

 

Na Era do Antropoceno, que tem por característica a intensificação das atividades humanas sobre os territórios, não é possível admitir a inépcia no licenciamento. As avaliações devem ser prévias e eficientes, abandonando visões pontuais, isoladas, sem apreender os reais impactos sociais e ambientais, compreender sua viabilidade ou determinar medidas de mitigação que permitam real segurança para o ambiente e a sociedade. 

 

É preciso diagnosticar a realidade ecossistêmica, compreender limites, elaborar políticas públicas integradas múlti e intersetoriais que possam, de fato, garantir sustentabilidade, observando atentamente vulnerabilidades hídricas, segurança alimentar, indicadores de qualidade -- e avançar sempre com a percepção dos cenários de adaptação climática.  

 

Nada disso será possível sem princípios basilares de boa governança, com transparência, abordagem científica e controle social. A recomendação que se impõe para governos, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, é trabalhar de forma integrada, observar a realidade ecossistêmica nas políticas públicas de proteção ambiental, traçando diagnósticos que contemplem sinergias e cumulatividades. Só assim será possível objetivar medidas preventivas e corretivas, com visão ecossistêmica restaurativa, evitando visões pontuais e insuficientes para diagnosticar impactos ambientais.

 

Do ponto de vista ecológico, é preciso compreender que a responsabilidade conjunta para a gestão do meio ambiente, prevista na Lei Complementar 140, exige integração da gestão, não permitindo um processo de incompetência concorrente, de fragmentação ineficaz da gestão decorrente da descentralização irresponsável. A integração é imprescindível para que a gestão possa ser efetiva em visão ecossistêmica. Proporcionar gestão apenas descentralizada é, de per si, antissistêmica. 

 

As mazelas atuais dos biomas brasileiros também necessitam de reflexão sobre as principais atividades econômicas que contribuem para seu colapso: o modelo anacrônico de parte do agronegócio, que ainda é desmatador e fora da lei. 

 

A busca da sustentabilidade real nos é ensinada pela atual experiência francesa de enfrentar a fúria do agronegócio ao expor os limites de capacidade de suporte e não permitir mais artificialização do solo sem medidas de real compensação. 

 

Um artigo recente do Le Monde nos traz a seguinte consideração: “As maiores fazendas estão caminhando para um modelo agroindustrial: uma agricultura corporativa que, na maioria das vezes, privilegia sistemas de produção simplificados, padronizados, altamente mecanizados e automatizados. Esse modelo baseia-se na monocultura, em parcelas cada vez maiores, sem árvores, sem sebes, no uso excessivo de fertilizantes sintéticos e pesticidas em detrimento dos ecossistemas, da diversidade agrícola e biológica, da qualidade do solo e da água. Concentra a produção em edifícios cada vez maiores e reduz o mundo vivo a uma máquina para produzir leite, carne, ovos ou frutas e vegetais insípidos com uma pesada pegada de carbono. Isso levou ao surgimento da agricultura sem agricultores em benefício dos acionistas interessados na rentabilidade de seu capital.

 

Considerando o atual cenário, somos compelidos a considerar o estado da arte dos ecossistemas brasileiros em busca de novas metodologias para a eleição de elementos protetivos. Ressalte-se a necessidade de intensificação dos processos de gestão, da estruturação adequada do Sisnama na área federal, com operacional adequado para fiscalização, situação funcional digna, com plano de carreira condizente com as atribuições, meios para implementação das medidas administrativas e fiscais, com acompanhamento jurídico e intensificação eficaz da penalização para contenção do desmatamento predatório e da criminalidade ambiental em geral. 

 

A governança ambiental do território brasileiro precisa rever métodos de avaliação para a sustentabilidade ecossistêmica, que já estavam bastante clarificadas na teoria da capacidade de suporte de Eugene Odum na metade do século XX, sacralizada em percepção global nos estudos do Instituto de Resiliência de Estocolmo e sob alertas de cenários adversos do desequilíbrio climático, que pode chegar a mais 2ºC até 2050. 

 

Nas palavras de Paul Crutzen, o Antropoceno significa o entrelace das forças naturais e humanas. Sem desmerecer a profundidade ética envolvida nas responsabilidades diferenciadas entre ricos e pobres, países e indivíduos, empresas e governos que continuam a promover intensas alterações negativas para o ambiente natural, a governança ecossistêmica é um imperativo contemporâneo de sustentabilidade para o mundo e para o Brasil. Em última instância, o que está em jogo é a capacidade humana e natural de sobreviver no Antropoceno. 

 

 

 

 

 

 

FONTE: Revista Carta Capital