Dissecação dos Cadáveres da Verdade e da Mentira

Dissecação dos Cadáveres da Verdade e da Mentira

É preciso dizer “a verdade”? Mas para si dizer a verdade, é preciso ter conhecimento do que seja “a mentira”? O que é a mentira? Ela é o oposto da verdade, o avesso da verdade. Mas de onde vem a própria noção de “oposto e de avesso”? Mas o que é “a verdade”, onde se encontra a verdade, ela já revelou seu rosto e articulou sua própria voz para a humanidade, a fim de que saibamos quem ela é de fato?

Se não conhecemos a verdadeira verdade, como podemos afirmar que “Isto ou aquilo acolá é uma mentira”?

O que é para a raça a humana a verdade? É uma informação precisa e uma explicação veraz que define uma determina uma coisa, que a caracteriza como sendo correta ou como sendo errônea, falsa. Mas o que é uma afirmação e uma definição? O que é algo tido como errôneo, por que algo é tido como errôneo? Quem ou o que o considera como certo ou como errôneo? O próprio “errôneo” existe porque se pensa saber que existe o “certo, o exato, o verdadeiro.”

Mas ninguém na verdade mente, porque ninguém conhece de fato a verdade. Supomos que mentimos porque pensamos conhecer a verdade. Daí surge um outro ponto: se não há verdade, se nunca houve verdade alguma, então não será tudo o que pensamos, dizemos e fazemos produtos da mentira? Se não há verdade, então tudo será uma mentira?

Mas se não há verdades, como posso eu afirmar que aquilo é uma mentira; se não há o seu oposto que possa ser utilizado como parâmetro de comparação para se concluir sem nenhuma dúvida que aquilo é uma mentira, como eu posso enfaticamente concluir que “isto é uma mentira”?

Se não existe a verdade, logo a própria mentira não existe também.

Mas se não mentiras e nem verdades, então como afirmamos que alguém mentiu e que o outro disse a verdade?

Se não há nenhuma das duas coisas, logo ninguém mente, como também ninguém diz a verdade. Então o que é feito na realidade por nós? É dito apenas coisas, palavras, e frases, apenas isto.

A mentira jorrou, e ainda jorra, da mesma fonte que a da verdade: a consciência do homem. A verdade é uma concepção originada pela linguagem conscientizada do homem, é um ponto de vista criado pelas análises da mente humana sobre uma determinada coisa. Ora, a mentira também assim o é.

Nietzsche disse em sua obra Fragmentos do Espólio: “Mas o que somos nós mesmos? Não será que somos apenas imagem? Um algo em nós, mudanças em nós que se tornaram conscientes para nós? Nosso ego, do qual sabemos: será também isso apenas uma imagem, um extra-nós, externo, exterior? Sempre tocamos apenas na imagem, e não em nós mesmos. Quão pobre e miserável é toda imagem da Consciência!”.

Quem disse que isto é uma verdade? É o homem ou é a própria voz da verdade, a qual nunca ouvimos sua voz, quem o diz? Mas como pode o homem saber e afirmar que isto é verdade? Muito simples: porque ele mesmo inventou a verdade, e todas as suas variantes, e no instante em que ele criou e definiu a verdade, consequentemente ele originou a concepção da mentira. A mentira é a inversão, ou um tipo de modificação da definição, conceituação, e caracterização institucionalizada de algo como sendo a verdade.

Jesus Cristo, sendo crido como Deus sempiterno, ao dizer aos seus discípulos que “Eu sou a verdade”, partindo do princípio que ele sempre existiu, logo também esta sentença sobre seu ser “Eu sou a verdade” também sempre existiu, pois o ser quem afirmou tal coisa é tido como sempiterno. Mas como o próprio Deus podia se considerar desde o princípio de sua eternidade como sendo a verdade se não existia a mentira?

Mas como ele podia chegar a se auto-classificar como sendo Eu sou a verdade se não existia mais nada, além dele próprio? Se existia no principio somente a Ele próprio, como ele chegou a conclusão e auto-definição como sendo ´Eu sou a verdade´, e não simplesmente “eu sou a mentira”?

Para se saber que algo é gelado, eu tenho de ter conhecimento do que seja algo quente. Para se saber que o duro é duro, e não macio, eu tenho que ter conhecimento das características das duas coisas. Mas se Deus, como a bíblia o retrata, “é a origem de todo bem, de toda bondade, amor, justiça, luz”, e Nele não há contradição, como Ele deduziu e se auto-classificou como sendo “eu sou a verdade”, se havia no princípio tão somente a Ele próprio?

Como ele sabia o que era mentira, se existia tão somente a eterna, pura e sempiterna verdade que era Ele mesmo?

A verdade apenas pode saber se ela própria é a verdade ao examinar o conjunto das demais coisas que estão ao redor dela, e por meio de análises e ponderações é que ela irá concluir que “isto é uma mentira, pois não condiz comigo, não se assemelha a mim, não é fruto de mim, logo sendo eu a verdade, isto aí é uma mentira.”

Mas o caso Deus é diferente. Ele era o único ser existente e sempiterno. Que metodologia comparativista ou empírica Ele utilizou para resolver se auto-intitular como sendo “eu sou a verdade”? Vemos dessa forma o absurdo que é a idéia da existência de Deus.

Ouso afirmar meus amigos: onde se encontra verdade, a mentira ali também reside. Quem busca abraçar a verdade, vai sentir também, embora não admita, o corpo abstrato da mentira entre seus braços.

Mentira e verdade andam sempre de mãos dadas, e quem segue ou luta por uma delas, segue e luta também pela outra, embora não se queria ver e nem admitir.

O que impulsiona o homem a querer buscar a verdade? De onde vem na alma humana esta vontade de possuir a verdade, de conhecê-la? Não teria sido esta vontade de querer a verdade, ter sido jorrada da mesma fonte imaginativa do desejo de se crer que ela existe? O desejo racionalizado pelas lógicas criadas pela própria consciência. Essa busca incessante pela verdade não teria sido compelida no homem pela própria mentira, a qual sempre tenta convencer o débil intelecto humano que “a verdade existe, contudo ela está oculta?”

O que é realmente a verdade, o desejo ou a vontade de possuir a verdade? Não será por que o homem não admita em hipótese nenhuma pensar que algo possa está o enganando? Mas não querer ser enganado não é também uma hipótese?

Disse Nietzsche : “A partir de sofrimentos e pensamentos foi parido esse delírio que chamais de vontade.” A vontade de verdade fecundada em si mesmo, quem sabe pelo próprio inconsciente, e no interior destes ovos mentiras e ilusões encobertas pela casca sedutora da Verdade.

A verdade é antes de tudo uma palavra, e por isso percebemos que toda verdade teve um princípio, uma origem: a conscientização da consciência humana. Foi quando o órgão da consciência humana desabrochou, e foi aos poucos de desenvolvendo em nosso corpo, foi neste exato período histórico que “surgiu a verdade”, isto é, a palavra verdade e suas derivações ficcionadas, como por exemplo conceitos sobre deus, alma, inferno, justiça, amor, ressurreição, certo, errado, mentira, etc. Todas as coisas vinculadas tanto a mentira quanto a verdade foram paridas do ventre ainda primitivo da consciência do homem.

Se levarmos em conta que Deus nunca tenha existido, será que havia verdades ou mentiras no mundo antes do ser humano adquirir consciência? Não, não havia.

O poeta Alberto Caieiro disse algo bastante importante que podemos pensar neste contexto: “As coisas não tem significação, tem somente existência.” Quem insere ou extrai sentidos, definições, verdades, leis e significados das coisas e nas coisas que há no mundo é o próprio Homem. Introduzir ou extrair uma explicação ou um significado em alguma coisa, ou de alguma coisa, não prova que existe de fato e em si a explicação ou o sentido, ou o significado extraído ou inserido na coisa analisada, observada. “O problema não está nas coisas, mas nas opiniões sobre as coisas”(Nietzsche, Fragmentos do Espólio).

O homem interpela o mundo e o universo para obter respostas e explicações, mas quem forma e sanciona estas mesmas respostas e explicações é o próprio homem, e nunca o mundo e as coisas interpeladas pela consciência do Homem.

Não podemos nem afirmar que “tudo é uma mentira”, pois se afirmamos tal coisa, a própria afirmação pode ser uma mentira, pois uma afirmação é um algo que está inserido em uma das partes do Tudo, e se Tudo é uma mentira, a própria afirmação já se torna um erro, uma mentira. É o mesmo ao se dizer que “não existe verdade alguma”, pois ao se dizer esta sentença, eu a profiro em um tom de afirmação, e toda afirmação já se expressa como sendo uma verdade. E como acabei de afirmar que “não existe verdade alguma”, a própria afirmação proferida já entra em contradição, e nesse caso se auto-aniquila.

Ao perceber tal antítese, o filósofo Nietzsche modificou a sentença sobre a verdade ao nos dizer que “talvez a única verdade é que o homem esteja destinado a inverdade”. Agora sim a sentença está melhor estruturada, e não entrará em um processo de auto-aniquilação paradoxal.

A mentira é originada pela fabricação da verdade, ou de se supor existir uma verdade.

Jesus afirmou no novo testamento que “o diabo é o pai da mentira”. Contudo, eu vos pergunto: quem criou o querubim da guarda ungido chamado posteriormente de Satanás? Foi Deus, o próprio Deus cheio de amor, com toda a sua onisciência e clarividência, sabendo de antemão que aquele querubim em específico se tornaria seu inimigo, se tornaria o diabo, “o pai da mentira”, e mesmo já sabendo disso, pois ele sabe de tudo, mesmo assim Deus o fez, e lhe concedeu vários poderes grandiosos.

Este é mais um exemplo em que a verdade concebe a mentira. Mas como pode a verdade originar a mentira, se a mesma é a verdade? E se a verdade nunca foi verdadeira, ela se julgou ser a verdade, mas na sua essência ela era mais uma outra mentira?

A mentira parindo mais uma outra mentira. Agora sim isso nos dá um pouco de sentido, e se encaixa melhor.

“O pai da mentira é o diabo”, disse Jesus. O pai do diabo é Deus-Jeová. E quem é o pai de Deus? O homem, o ser humano. Perceberam o ciclo de mentiras ao qual inventamos e participamos todos os dias?

Lembrem-se meus amigos: todas as verdades, mentiras, idéias, convicções e crenças só existem graças a nós, por tanto, todas elas devem se submeter a nós, devem servir a nós, devem prestar continência a nós, devem servir para glorificar seus criadores, isto é, a cada um de nós. Não se ajoelhe perante a obra de sua criação. Afirme a divindade de teu próprio ser. Caminhe para além do bem e do mal. Ultrapasse todas as fronteiras e muros ideológicos e conceituais existentes. Ultrapasse a ti mesmo; humanamente, ousadamente.

Quão sagrada e fértil é a nossa imperfeição.

Concluo este texto utilizando mais uma frase do loucamente genial Nietzsche, que explica resumidamente o que estou tentando vos esclarecer: “Tudo o que é pensado é consequentemente uma ficção.”.

GILLIARD ALVES

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 29/12/2007
Reeditado em 01/01/2008
Código do texto: T796227
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