Mar, reflexivo mar
Paulinho e seu canto das águas: isso é lindo
“...a rede do meu destino parece a de um pescador,
quando retorna vazia vem carregada de dor”.
Timoneiro (Paulinho da Viola/ Hermínio Bello de Carvalho)
Seria mesmo de se esperar que o menino criado em Botafogo viesse no futuro escrever lindas canções que falam sobre o mar. Imagino o bairro naquela época – antes da grande especulação imobiliária que saturou até o máximo suportável a cidade do Rio de Janeiro – , com os barcos de pesca a predominar a paisagem, em vez dos iates de hoje. Imagens vistas em nossa infância nos acompanham pra sempre: cada um de nós tem seus belos fantasmas pessoais, feitos de natureza viva ou morta. Hoje, o menino está com os cabelos branquinhos. E não é que dizem que ele está mais bonito assim...
Ao lado de minha filha Juliette, assistindo a Paulinho da Viola, na véspera de natal, no Dvd, ouvi dela a seguinte observação: “Nossa! Todas as músicas dele falam de água”. Todas não é verdade. Foi um exagero precipitado do olhar infantil. Na verdade só algumas canções dele têm esse tema, dentre uma vasta obra. No entanto, o assunto está, sim, presente em versos de várias de suas canções. E o fato de serem estas canções tão belas pode ter influenciado a fala de minha pequena. Talvez as canções “marítimas” de Paulinho estejam, de fato, entre suas melhores. Às vezes é o mar, às vezes um rio, um barco, uma tempestade: a água está lá. E como o mar e a água são capazes de dar luz a grandes e ricas metáforas sobre a vida cotidiana... E isso é lindo.
Na canção (usarei a palavra “canção” em vez de “samba”) Timoneiro, de 1996, ele canta: “e quanto mais remo mais rezo pra nunca mais se acabar / essa viagem que faz o mar em torno do mar / meu velho um dia falou, com seu jeito de avisar: olha, o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar...”. Esta é uma das mais lindas poesias cantadas já produzidas pela música brasileira que levam a palavra mar. O refrão então (“não sou eu quem me navega / quem me navega é o mar...”), se distingue do que normalmente se ouve em letras de sambas convencionais, pela sutileza, pela riqueza metafórica, pela surpresa. Fica claro que uma letra como a de Timoneiro, ao falar sobre quem vive do mar, e sobre o mar em si, está propondo, na verdade, uma reflexão sobre as angústias comuns à vida de qualquer pessoa.
No, provavelmente, maior sucesso da carreira de Paulinho da Viola, Coração Leviano, gravado em 1978, já estava lá o mar: “este pobre navegante / meu coração amante / enfrentou a tempestade / no mar da paixão e da loucura / fruto da minha aventura em busca da felicidade...”. Uma coisa muito legal deste samba, digo, desta canção, é a capa do disco original em que ela está gravada. Ela está aqui nas minhas mãos neste momento. É um vinil, obviamente, e a capa é daquelas duplas, que abrem. Na contracapa e no meio, um cavaquinho em processo de manufatura, numa bancada, em meio a várias ferramentas. E penso: quem poderá me responder se as mãos que fabricam aquele instrumento são de Paulinho? Não sei. Na foto, elas me parecem mãos meio rudes. Entretanto, como todos sabemos que ele é um grande aficionado de trabalhos manuais, é possível que seja mesmo ele quem monta o cavaquinho. É uma das mais lindas capas que já vi. Mas isso não tem nada a ver com mar. Pelo menos, a princípio, não tem.
Acontece, ainda, que, muito antes disso, lá no comecinho da década de 1970, Paulinho da Viola já se consagrava como compositor de samba, usando a água para falar de amor e de carnaval, com o seu grande clássico Foi um rio que passou na minha vida. Os versos que fecham o grande samba (agora, neste caso, sim, só posso mesmo usar a palavra samba) são pura maravilha: “não posso definir aquele azul / não era do céu, nem era do mar / foi um rio que passou em minha vida / e meu coração se deixou levar”.
Mais água – Em Onde a dor não tem razão, o sambista canta: “canto / pra dizer que no meu coração / já não mais se agitam as ondas de uma paixão / ele não é mais abrigo de amores perdidos / é um lago mais tranqüilo, onde a dor não tem razão...”. No “samba-explicação”, que critica os sambistas “excessivamente modernos”, Argumento, lá está o sábio conselho: “faça como um velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar...” A mensagem do verso tinha endereço certo: os sambistas apressados em transformar o samba – na ocasião, vários grupos abusavam dos recursos do teclado eletrônico, modificando tremendamente a sonoridade daquilo que concebemos como samba. Uma discussão polêmica. Na verdade, um estilo musical não depende de instrumentos específicos para se caracterizar, mas sim o ritmo é preponderante neste caso. Contudo, discussão de estilo à parte, é muito fácil ver a versatilidade de um verso como este de Argumento e sua aplicabilidade em várias situações. Isso é mais que um verso musical. É algo muito próximo de um provérbio chinês ou bíblico. A figura do “velho marinheiro” evoca sabedoria, e, conseqüentemente, paciência – coisas que emanam dos olhos do compositor. Coisas das quais se precisa cada vez mais, nesta vida tão veloz e precipitada.
Na lindíssima Quando o samba chama, de 1996, lá está o amor, e o mar: “o que era sonho / pétalas no mar / logo é transpiração...”. Em Mar grande, do mesmo ano – dispensarei comentários e transcreverei a letra: “se navegar no vazio é mesmo o destino do meu coração / parto pra ser esquecido / navio perdido na imensidão / lobo do mar / timoneiro / me leve pro sol / quero outro verão / não quero mar de marola / das praias da moda, na arrebentação / quero um mar alto, um mar grande / por favor não me mande de volta mais não / não quero cais / outro porto / não mais o mar morto da minha ilusão / prefiro ir à deriva / me deixe que eu siga em qualquer direção / se eu sou de um Rio marinho / o mar é meu ninho / meu leito e meu chão / se navegar no vazio é mesmo o destino do meu coração”.
E, por fim, recentemente, até novos parceiros adotaram o mar. Ao colocarem letra em uma melodia feita por Paulinho, sob encomenda despretensiosa deste, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, ao escreverem Talismã (em sua primeira parceria com o sambista) utilizaram estilo muito próximo do que o próprio Paulinho da Viola faria: “eu não preciso de talismã / nem penso em meu amanhã / vou remando com a maré...”. Remar com a maré, não contra ela. É isso que Marisa e Arnaldo fizeram ao escrever algo tão simples e “pauliniano”. Talismã, assim como algumas das canções citadas aqui, está no novo trabalho de Paulinho da Viola, que é o Acústico MTV. É este o Dvd que eu assistia com Juliette. Quando eu ouvi dizer que ele estava lançando um Acústico MTV, eu pensei: até você, Paulinho? Achei descabido, já que sua música sempre fora acústica – nunca ouvi um samba dele com guitarra. E, como sabemos, a idéia desses projetos da MTV é, basicamente, que os artistas mostrem versões acústicas para canções que originalmente continham instrumentos elétricos em seus registros, sobretudo guitarra elétrica. Assim como também sabemos que a idéia original da emissora já foi pras picas há muito tempo. Mas, tudo bem. Se o Paulinho quer, se quis participar, deixa ele. Ele deve saber o que está fazendo. Afinal, é uma oportunidade que ele tem de ver sua música divulgada no país intero, e até no exterior, com mais eficiência que os discos “normais”. Uma produção cara, bem cuidada, enfim, um convite difícil de se recusar. E o negócio ficou mesmo muito bom – eu já vi umas seis vezes, no mínimo. Há ainda no Dvd outros destaques, como Dança da solidão; o inesquecível – e deslumbrantemente filosófico – tema novelesco Pecado capital; a irônica Eu canto samba, aqui num arranjo sofisticadíssimo, trazendo a notícia: “...há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou: só se foi quando dia clareou”; o delicadíssimo pot-pourri de voz e violão com trechos de 14 anos, Jurar com lágrimas, Recado e Coisas do mundo minha nega; e a – não existem muitas outras formas de tratá-la – obra-prima Sinal fechado, uma música que destoa bastante de tudo o que ele já criou. A letra de Sinal fechado é sutilmente cantada em duas pessoas que dialogam, numa única voz. Este último trabalho de Paulinho, que, na verdade, é o seu primeiro Dvd exclusivamente musical, é um convite a novos fãs; gente que precisa descobrir o grande artista, grande compositor, e cantor de voz mansa e macia. Para os antigos, o Dvd representa a possibilidade de deliciarem-se com os velhos sucessos, e alguns não tão velhos, num som de inigualável captação – todo grande compositor merece uma gravação dessas. Sendo assim, boa sorte a Paulinho da Viola. E “Viva o Paulinho da Viola”. Do Rio para o mundo. Ou melhor, do rio para o mar.