O Amor para a Psicanálise ( Parte III )
Cont. da Entrevista
Entrevistadora: E nas mulheres?
J-A Miller: É menos habitual. No caso mais frequente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a
anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em
casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem…
Entrevistadora.: Por que “cada vez mais” ?
J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O
amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman. Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a
assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar
não desapareceu, mas está em baixa.
Entrevistadora : “O amor é sempre recíproco”. dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto
atual? O que significa ?
J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando se produz, é
sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.
Entrevistadora: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por
que ela?
J-A Miller: Existe o que Freud chamou de: ( Liebesbedingung ), a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para uma função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima.Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo,
assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!