Sobre a questão do (pseudo)Livre-Arbítrio

A escolha, o arbítrio, a liberdade, todas essas coisas de fato existirão? Não serão elas criações dos desejos do homem? Não serão elas “verdades” que o próprio homem inventou para acreditar, e para tentar alcançar a própria coisa criada por ele, como uma espécie de alvo a ser atingido? Mas quem criou o alvo? E as armas para se atingir este alvo, quem as criou? E a vontade de atingir este alvo inventado por meio destas armas fabricadas para tal propósito, quem criou esta vontade na alma humana?

A vontade no homem, o que é isso afinal? Ela veio antes da razão, da consciência, ou a vontade é a própria consciência, ou é um dos desdobramentos da consciência? A vontade tornou-se algo conscientizado, ou algo conscientizável?

Alguém está em casa, e de repente lhe surge uma desejo, uma vontade de comer sorvete. Indo a sorveteria, este indivíduo olha os diversos sabores que ele pode optar para comer. Ele escolhe sorvete de chocolate, e mistura com outros dois sabores. No momento em que ele escolhe, ele automaticamente exclui os demais que ali estão. Há outros sabores que ele nunca escolherá, porque ele não gosta. Por que ele não gosta destes outros sabores? Será que realmente houve uma escolha neste exemplo acima citado? O que é escolher?

O ato da escolha se inicia primeiramente com uma vontade, um desejo. Mas de onde se origina esta vontade, este desejo? Não o sabemos. No exemplo acima, o indivíduo estava em casa, e teve subitamente vontade de comer certos sabores de sorvete. Foi justamente esta vontade, que ele não sabe de onde se originou, como se originou, por que se originou, ou se foi ele próprio que a originou, foi esta vontade que o levou a sorveteria, e lá na sorveteria o individuo exerceu sua liberdade de escolher determinados sabores. Contudo, a escolha destes sabores deste indivíduo já está condicionada a seu gosto e a sua preferência por certos sabores, excluindo os demais, o que nos leva a fazer a seguinte pergunta: Neste exemplo analisado, houve deveras uma escolha de sabores? Podemos claramente notar que a “escolha” de sabores por este indivíduo já estava predeterminada a sua preferência e gosto por tais sabores. Mas esta preferência e gosto por tais sabores foram originadas de que modo? Por que este indivíduo gosta destes sabores, e dos demais restantes ele rejeita? Ele escolhe por dizer não querer, ou melhor, não gostar dos demais sabores? Como se originou esta preferência e este gosto por isto, e não por aquilo?

Na verdade o próprio indivíduo não sabe, ele até pode criar uma resposta, uma justificativa, uma razão, mas no fundo ele mesmo não sabe, não consegue saber, nem responder a esta indagação. Pergunto novamente: existiu neste caso uma escolha? Minha resposta é não, e também sim. Percebemos que em todas as nossas escolhas realizadas estão ligadas a vontade, e esta vontade surge de onde, como, e para quê? Observamos que a vontade é desencadeada por impulsos em nosso ser dos quais não temos uma participação consciente, efetiva e voluntária, e se não temos uma participação consciente e voluntária no princípio do todo processual que irá nos levar a escolher isso, e não querer aquilo, como podemos afirmar enfaticamente que temos livre-arbítrio, que realmente houve por inteiro uma escolha?

Se não há de nossa parte um desencadeamento consciente e voluntário dos impulsos que irão formar a vontade, vontade esta que nos levará, ou nos convencerá, ou nos empurrará ao ato da escolha de uma determinada coisa, como podemos ter certeza que realmente houve livre-arbítrio, de que houve inteiramente uma “escolha”?

Se estes próprios impulsos em nosso ser são originados e processados inconscientemente em nossa alma, impulsos estes que fecundam a vontade, e é esta vontade que irá me compelir a escolher, essa escolha é fruto realmente de meu “livre-arbítrio”?

Vamos analisar um outro tipo de exemplo. O escritor russo Fiódor Dostoievski criou um dos personagens mais singulares e fascinantes, na minha opinião é claro, da literatura: o jovem Rascolnikov, da obra “Crime e Castigo”. Nesta ficção literária, o personagem já mencionado decide matar uma senhora já idosa. Esta decisão de cometer um assassinato é criada a princípio por uma idéia inventada pelo jovem estudante de Direito: a crença em sua superioridade. Rascolnikov analisa vários personagens marcantes da história humana, como Maomé, Napoleão, entre vários outros, e percebe um elo entre todos eles: Todos derramaram o sangue de outros indivíduos em prol de suas convicções. E mesmo tendo cometido crimes e assassinatos, a História e o Mundo os retrata como heróis, como grandes guerreiros, como salvadores, como “ grandes Homens Superiores” . Rascolnikov acredita que ele também o é. E a partir da fixação por esta idéia, ele decide praticar o assassinato. Depois de cometer o assassinato, um duplo assassinato aliás, ele começa a se interrogar os porquês que o levaram a cometer este crime. Rascolnikov entra num estado atormentador de remorso, pois ele começa a duvidar das verdadeiras origens e motivos que o fizeram praticar este crime. A idéia formulada por ele para justificar seu ato passa a ser duvidada, descrida. Rascolnikov era pobre, e seus estudos e sua vida na cidade grande eram sustentados por sua mãe e por sua irmã, as quais se sacrificavam ao máximo para ajudá-lo a concluir a faculdade. Ele habitava num lugar pequeno, quente, mal tinha dinheiro para se alimentar. Rascolnikov odiava sua condição financeira, odiava precisar dos outros, odiava a compaixão até de sua mãe e de sua irmã, ele odiava sua vida como era. Ao analisar todo o panorama de sua vida, Rascolnikov começa a descrer do verdadeiro motivo que o levou a praticar o assassinato. Ele passa a não entender o porquê de seu crime. Antes havia um motivo, um propósito, baseado em uma idéia, em uma convicção. Depois da concretização de sua idéia, ele passa a desconfiar das verdadeiras intencionalidades de sua vontade ao planejar o derramamento de sangue alheio.

Rascolnikov passa a perceber que ele não sabe na realidade o verdadeiro porquê de ter praticado o assassinato. E é justamente ele não mais saber os motivos, que o levaram a escolha de cometer um crime, que o atormentam. A sua angústia não se trata do remorso do crime em si, mas as dúvidas que antes não existiam sobre as motivações do homicídio consumado.

Todo o livro nos dá informações que podem ser usadas para tentar explicar e entender o crime praticado por ele. Mas o próprio personagem tem dúvidas de todas estas análises sociais, deterministas e psicológicas que podem, e serão utilizadas em seu julgamento posteriormente, tentar explicar e esclarecer o seu crime.

“O livre-arbítrio”, o personagem poderia ter escolhido desistir de seu plano, poderia ter escolhido não matar ninguém. Como estes impulsos surgiram dele? Quem os formou, como se formaram, e por que ele não os rejeitou? Rascolnikov passa a perceber que ele não entende, e nunca irá entender, os reais motivos de suas ações, de suas escolhas, de seus atos. E por que ele nunca irá entendê-los? Porque ele próprio desconhece a origem real que o compele a escolher, a agir.

Eu poderia até afirmar que existe livre-arbítrio se houvesse a participação inteira e plena da consciência do indivíduo no todo processual do Ato da Escolha. Contudo não há. Só há uma participação objetiva e consciente do indivíduo no processo final resultante do ato da escolha. Diante destes aspectos observados, concluo que a idéia do livre-arbítrio como se tem acreditado até hoje é um erro, é falsa, é um engodo.

Escolhemos não porque somos livres para escolher, escolhemos porque somos compelidos incompreensivelmente a escolher. Não “Somos Condenados a ser livres”, como dizia Sartre; somos condenados (durante este interstício existencial) a escolher, inutilmente e indecifravelmente.

Gilliard Alves

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 22/12/2007
Reeditado em 17/04/2018
Código do texto: T788616
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