DA INTOLERÂNCIA NOSSA DE CADA DIA

Lúcio Alves de Barros (mestre em sociologia e doutor em sociologia e política pela UFMG)

Creio que já é lugar comum o pensamento de que homens e mulheres não são perfeitos, tampouco onipotentes e oniscientes. Todavia, é de se estranhar o exército de seres humanos que, no poder, ou pelo menos fazendo uso dele, mudam suas feições e deixam de ser o que antes adoravam apregoar que eram. Basta uma chance para que esses bípedes humanos, nas sábias palavras do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), coloquem os dentes para fora. Daí, para um bom observador, bastam poucos segundos para perceber o sadismo, a perversão, a maldade e o caráter míope do ser humano que, poderoso, espuma as beiradas da boca, na busca da presa, por ora vitimizada.

Não é preciso grandes problemas para isso: um atraso no trabalho, um esquecimento de uma atividade, uma reclamação com ou sem fundamento, uma palavra em uma conjuntura e já está sendo feito o teatro e o ciclo da perversão, do masoquismo latente e do sadismo manifesto. E não pensem que tais relações se resumam ao macro aparato da política. Há muito já sabemos, na esteira do pensamento do historiador e filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), da existência do micro-poder que perpassa as mais singelas relações humanas. Infelizmente, teia relações são perigosas e, por vezes, imperceptíveis ao senso comum. Por falta de linhas, destacarei algumas. Poucos (e desculpem a generalização) não vão se lembrar das eternas esperas em filas de banco, em escritórios de advogados, clínicas de médicos, salas dos serviços públicos e da má educação dos atendentes do INSS e da maioria dos funcionários públicos e privados. Outros, sabem das reuniões organizadas para “ferrar” o sujeito que “não andou de acordo com as normas expostas”, “que fala demais”, que “anda com roupas boas”, “gosta de viver”, “ama trabalhar” ou está sempre resolvendo as coisas com as próprias pernas. Podemos acrescentar outros casos como o de fofocas, a invenção de casos, narrativas do tipo, “falaram de você...”, “depois te conto, mas....”, “se eu fosse você abriria os seus olhos...” e assim por diante. Infelizmente, poucas pessoas percebem tais relações (principalmente as mais humildes) e aos que percebem, cabe o estigma de paranóicos. Triste fim esse da humanidade.

O fato, não muito bom ser dito, é que não estamos livres desse poder. Os franceses, que adoram nomear tudo, chamaram isso de assédio moral. O problema não é o nome, tampouco os conceitos utilizados nas academias de respeito. A questão reside são nas conseqüências. É difícil não se resignar na percepção de que as pessoas gostam (gozam) dessas relações. Os ditos poderosos sabem utilizar o poder micro não-observável e, infelizmente, são escassos os olhos atentos que possuem a capacidade de perceber a verdadeira face das máscaras que são trocadas ao sabor daqueles que detêm o poder. Acredito que isso não seja por acaso, afinal, se todos pudéssemos perceber o conjunto de maldades que é a condição humana, talvez seria inviável as relações sociais.

Contudo é doentio, vergonhoso e humilhante estar e persistir em situações nas quais os seres humanos são reduzidos à presa de outrem. Em tais casos, homens e mulheres lidam com verdadeiros predadores, sádicos e perversos que desejam pelo simples ato vampiresco, sugar a energia vital daqueles que estão ao lado ou, por diversas razões, por baixo. A questão é complexa, pois na realidade vivemos com base em representações e o que causa mais ojeriza - aos poucos capazes de observar - são aqueles que gozam porque gostam de se agregar aos predadores. Digo daqueles que chamamos no passado de “capatazes”, “homens do mato” que apreendiam os escravos, dos “supervisores”, puxa saco de patrões e por aí vai a turma dos que gostam de mandar às custas daqueles que possuem capitais político, culturais e econômicos. Estes personagens não suportam a alegria alheia, morrem de inveja e de inferioridade e só ficam satisfeitos quando o “oponente” se cansa por estar humilhado e destruído. Na minha singela opinião, esses coadjuvantes da vida, sofrem sérias psicoses e se divertem com a fantasia, a generosidade e as vulnerabilidade alheia. Os predadores não são cristãos, e olha que muitos batem a mão no peito nas igrejas, e só sabem sobreviver com a energia daqueles que realmente brilham por mérito ou por sorte. Não é possível, como disse, perceber e delinear tais relações. Elas são invisíveis e, por conseqüência, as percebemos somente quando estamos muito vulneráveis, machucados ou mesmo quando começamos a acreditar que somos piores que os predadores. Por economia de linhas , tenho que terminar o raciocínio, mas deixo uma leve reflexão: é inútil tentar modificar, “fazer as pazes”, “salvar” ou “ver o outro lado das coisas”. Não existe espaço para a paz neste campo de guerra. Neste caso, de duas uma: ou a pessoa é iludida e, em seguida anulada, ou parte para a reação. Se Deus existe, creio que cabe à sua criação reagir ao poder do próximo ou mesmo re-significar suas ações quanto à sempre ser entendido como “o problema”, “a pessoa que critica”, “o bravo”, “aquele que erra” e “o que reclama”. Mas desistir jamais. Nada como a manutenção do ego e da certeza do próprio self (eu). Rousseau (1712-1778), filósofo suíço, afirmava que é melhor morrer do que ser escravo. Não creio que Jesus Cristo tenha feito diferente. Em tais condições, cumpre às “presas” humanas, a grande arte de sair dessa condição. Mais que isso, cultivar a arte da coragem de lutar, apontar, ver além dos fatos, insistir, verificar, perguntar, denunciar, se responsabilizar, colocar o dedo no problema e definir os limites da civilização. Tal como disse o grande poeta e dramaturgo alemão, Bertolt Brecht (1898-1956): “verifique a conta. É você quem vai pagar. Ponha o dedo sobre cada item. Pergunte: o que é isso? Você tem que assumir o comando.”