Sandra Pien e o Fantasma de Borges
UM IMAGINÁRIO BEM REAL - Poetas dormem com fantasmas, que logo viram anjos e demônios em busca de luz: querem sair do limbo e o meio mais eficaz é através do escritor. Na madrugada do dia 24 de agosto de 1999 Sandra Pien foi despertada pelo farfalhar de tecidos. Podia ser a cortina da janela entreaberta, mas ao levantar viu um vulto que se esgueirava atrás dos móveis e depois sumir. Sandra seguiu o ruído de passos que mal tocavam o chão, mas a cada olhada o vulto teimava em não se mostrar. Ela viu o andar leve e o corpo com os ombros recurvados, viu o sobretudo inglês, a bengala silenciosa. Era difícil resistir, era difícil desistir da perseguição – e assim ela caminhou como que saltando os quadros de um esquema de palavras cruzadas até voltar ao ponto de origem. Ela notou o semblante de índio e reconheceu os lábios derreados que, mudos, declamavam versos. Finalmente Sandra Pien desistiu. Cansava perseguir um fantasma. Foi até a janela e através do vidro umedecido pelo vento frio perseguiu o mesmo vulto pela rua a fora até vê-lo se perder nos becos. Buenos Aires dormia e ainda o céu permanecia plúmbeo sem desvelar os primeiros tons da alvorada. Sandra sentou-se à escrivaninha e começou a escrever – escrever todas as palavras que eram ditadas por uma voz sumida, um sopro apenas. Ora a mesma sua voz, ora uma voz mais cansada. As laudas foram se amontoando e quando a última página foi largada na pilha, a poeta estava tão esgotada que mais parecia ter corrido uma maratona por inteiro. Em passos trôpegos Sandra Pien voltou ao leito, enrolou-se bem nas cobertas para se livrar do frio da madrugada e da companhia fugaz dos fantasmas. Quando acordou de manhã e viu pela janela aberta uma luminosidade que bem poderia ser do sol tentando aparecer entre as nuvens, a primeira coisa que ela pensou foi: “Mais um sonho com Borges, mais um quase pesadelo com Borges”. Desse momento até ela estar pronta para sair algumas horas depois, todos os afazeres, domésticos ou não, tomaram conta da sua cabeça. E só quando se decidiu a arrumar a mesa de trabalho e a escrivaninha é que reparou a pilha de papel arrumada num canto. Uma olhada breve confirmou que as quase vinte laudas haviam sido preenchidas com a sua letra, bem menos caprichada, bem mais desalinhada, mas a sua letra sem sombra de dúvida. Na pressa Sandra pegou toda aquela papelada e meteu numa pasta de plástico transparente, antes que o susto a tomasse de vez: “Afinal, desta vez não foi um sonho. Desta vez não foi um pesadelo”. Nove noites, nove sonhos, nove encontros com esse Borges que a perseguia sem dar trégua. E se lembrou que Jorge Luis Borges estaria completando 100 anos naquele mesmo dia...
A POETA DE BEM COM A VIDA - Sandra Pien nasceu em Buenos Aires, no dia 18 de janeiro de 1960. Poeta, escritora, jornalista, é, sobretudo, "uma sonhadora de espaços, interiores e exteriores". Licenciada em Letras pela Universidade de Buenos Aires, escreve crônicas, colunas e reportagens, como ofício cotidiano. E também dá aulas de literatura. Depois de deixar para trás os claustros do Colégio Nacional de Buenos Aires, onde encontrou os clássicos da literatura, passou a se dedicar à produção literária. Em 1995, o livro “La fiesta del ser” recebeu Menção de Honra da Sociedade Argentina de Escritores e em 1996 teve poemas incluídos na antologia “Poesía Argentina de Fin de Siglo”, publicada por Editorial Vinciguerra. Em 1998 publicou “Patagonia Rumbo Sur” (texto bilíngüe espanhol-inglês), poemário inspirado na vivência de invernos passados nos Lagos Argentinos e nas viagens através da Patagônia. Com “miBorges.com”, Sandra Pien se coloca na vanguarda do uso virtual da palavra no ciberespaço. A obra de Jorge Luis Borges, na grande biblioteca da humanidade que se configura minuto a minuto na Internet, conta com inúmeros sites e páginas dedicadas a seus poemas, contos e ensaios. O aporte de “miBorges.com” a esse monumento, torna especial esta obra criada especialmente em comemoração ao centenário do poeta porteño. Sandra Pien desenvolve sua ars poetica com a espontaneidade conhecida, porém, fica claro que em “miBorges.com” surgem novas vibrações, predestinadas a viajar nos ilimitados confins do espaço virtual. Sem dúvida uma das maiores homenagens ao grande escritor que, com seus labirintos, antecipou a inóspita estrada da informática. Muitas outras palavras de Sandra Pien estão para sair a lume. É esperar pra ler... (Fonte: http://www.miBorges.com)
O POEMA DE SANDRA PIEN
meuBorges.com
E Deus o fez morrer durante cem anos, depois o reanimou e indagou:
- Quanto tempo estiveste aqui?
- Um dia ou parte de um dia, respondeu.
Alcorão, II 261
Paráfrase do conto “O Milagre Secreto”, Ficções, J. L. Borges
COMO CONTA BORGES - "Foi na noite de Natal de 1938, o mesmo ano que morreu meu pai, que sofri um grave acidente. Eu subia apressadamente uma escada quando de repente senti que algo rasgava a pele de minha fronte; tinha roçado no vidro de uma janela recém pintada e aberta de par em par. Apesar dos primeiros socorros, a ferida infeccionou. Durante uma semana mais ou menos permaneci de cama sem dormir, sofrendo alucinações e com temperatura elevada. Uma noite perdi a capacidade de falar e tive de ser trasladado urgentemente ao hospital; havia sofrido uma septicemia e durante um mês me debati entre a vida e a morte... Havia escrito alguns poemas e dezenas de resenhas breves, pensei que se agora tentasse escrever algo e fracassasse, então significaria que estava acabado intelectualmente. Porém se tentasse algo que não tivesse feito nunca anteriormente e fracassasse, não seria tão doloroso e poderia até me preparar para a revelação final. Decidi que tentaria escrever um conto; o resultado foi “Pierre Menard, autor del Quijote”. Recordo que minha mãe queria ler para mim fragmentos de um livro que eu tinha pedido a ela, “Out of the Silent Planet” de C. S. Lewis, mas durante três noites não a deixei ler. Finalmente prevaleceu sua vontade e, após escutar uma ou duas páginas, desabei a chorar. Minha mãe me perguntou qual era a razão das lágrimas. Choro porque compreendo, disse”. (“As memórias de Borges”, publicado no “La Opinión” de Buenos Aires, em 17 de setembro de 1974).
PONTO DE INFLEXÃO - "O ponto de inflexão (na vida de Jorge Luis Borges) foi um terrível acidente que sofreu no fim do ano de 1938. Sempre tinha sofrido problemas de visão, e naquele ano resvalou numa escada mal iluminada e caiu, ferindo-se gravemente na cabeça. Esteve seriamente enfermo no hospital durante semanas, teve terríveis pesadelos e uma convalescência dolorosamente lenta, durante a qual começou a duvidar de seu estado mental e de sua capacidade de escrever. E deste modo, aos trinta e nove anos, tentou escrever um relato para se tranqüilizar..." (Bloom, Harold – “El canon occidental”, Anagrama, Barcelona, 1995, pág. 473)
PARA TI LEITOR - Escrevi este livro como me ditaram numa noite. Em seguida foram quase dez dias de polir os versos apaixonada e febrilmente. Sonhava com Borges acordada e também quando dormia. De tanto pensar nele saíram, repito, como ditados, os versos a seguir e que, como uma obsessão, me perseguiram até o momento de editar este livro. É para me livrar dessa obsessão que a divido com quem tenha a paciência de ler, em papel ou na Internet, os Nove Cantos que compõem o poema. Falta explicar este jogo de sonhos de ida e volta no qual Borges, em seu delírio de 1938, imagina como falta pouco para terminar o seu século – e agora é uma poeta que sonha? Ao leitor que ama os labirintos e os tigres não darei explicações. Só o convido a navegar esta viagem onírica e borgeana como eu fiz, em nove travessias, durante outras tantas noites do último inverno do milênio.
O POEMA
Canto I
Eu te convoco poeta
disse Borges
ao eterno retorno
urdidura remota.
Numa cama de hospital
Borges delira.
Aconteceu um acidente tolo
escadas ascendentes temporárias
esconderam uma janela cruel
profundo corte
vermelho profundo
sangue no calendário indiscreto
goteja 1938
no final de dezembro.
Imagens em filigrana
paradoxo em sombras febris
ele sabe
não é o rio de Heráclito
perambula deixando repousar
seu corpo imóvel
bengala em mãos
tateando perpetuamente o muro
eterno.
Faminto de atividade em seu espírito
elétrons girando nos núcleos
bilhões de vezes por segundo.
Borges delira
sonha o desígnio
de um só poema atemporal.
Balbucia
não recebemos os feitos
só o seu reflexo em uma consciência
e a paixão
com os feitos sensíveis.
Invoca a Shelley
to illumine our tempestuous day
insiste em se duplicar
não só os sentidos
são falsos testemunhos
a imaginação
não alcança imaginar
a verdadeira forma da natureza.
Septicemia dizem os doutores
Hipertemia e desesperança
o tempo é uma ilusão
declara-se um conflito.
Sou um espelho perdido do meu pai
conhecedor do poder do canto
dimensão existencial básica.
Borges revive na minha mente
o jardim de utopia.
O odor dos eucaliptos
na memória
o transporta em mim
para Adrogué
simetria idônea do ócio das
tardes.
Sou peregrino repete
voz e destino de mortal.
Canto II
Sonha-me que o sonho
virtualiza em mim
letras convertendo-se em palavras.
Somos um e três com Whitman
cada pequena pedra
espelha a glória
do grande princípio
do último mistério.
O Vitor Hugo de Borges
batalha em mim
com seu Rousseau
toda a natureza
é o caos em harmonia
instável ordem
de complexas seqüências
temporais.
Borges se aliena
descende ao nascimento
para conjurar a cabala
linguagem anterior à criação
leite materno estudioso da
escritura
cem anos à frente
desde 1899 aturdida lança.
Acolá o ponto lírico
situado dispõe
do tempo circular
um poeta é todos os poetas.
Revolve na idéia de seu Platão
aquela cópia de cópia
e celebra
sou a sombra da sombra do poema.
Sinonímia quase sorrindo
bardo rapsodo trovador
jogral cantador aedo
troveiro declamador sou.
Trinta e nove anos de febre
remetem a outros trinta e nove
pequena distância cosmológica
e ela me sonhará que a sonho poeta
filamento talvez aceso
nesse sortilégio eficaz
temporal porta cancela
da substância de que sou feito.
O azar será o emblema
impossibilidade de conhecimento
humano
porém outra lógica
talvez espinoziana
diferente casualidade.
Canto III
Esse é um invisível fio
mistério invulnerável
caminho escuro
sensação de solidão
já conhecida
habitando um leito estranho.
O pátio axadrezado da infância
retornou em mim sua presença
compartilharemos Palermo
seus punhais maldosos
com seus cravos carmim fantasmas
sussurrou
percorreremos velhos sermões
ofertórios galantes
na alma do subúrbio
rituais daquele homem tênue
na figura de Carriego
– citá-lo é revivê-lo –
Em seu sonho concatenado.
Borges se exalta
demorado silêncio precoce
a matéria é permanente
sem estrutura
idéia de fóssil
lembranças da origem
o universo contém sua história.
Tomaremos parte
dos pesadelos de Kafka
e de suas obsessões
a parábola sucederá
à confidência.
Por essa afinidade do azar
nos visitará também
o nobre que assistiu
a Keats e antes a Ovídio.
Recitaremos aquele hino glorioso
do senhor do espaço
e do tempo saturado
de magia hindu
assim essa dor física
minha e de todos
fará com que a alma esqueça
seus outros infernos.
Canto IV
Esta cama se faz de amarras
armadilha e vínculo
entre espiritualidade e matéria.
Esta noite perdi
a capacidade de falar
bestas selvagens me perseguem
porém ainda resisto obstinado
me eterniza o prazer de pensar.
Borges se excita
relembra uma dívida antiga
com a mão esquerda
desde a batalha de Lepanto
e a recoloca neste delírio.
Ressuscita Alonso Quijano em mim
tão genial cavalheiro
infinita fonte de inspiração
se refazendo em nós
em pele a leitura
de centenas de cantares
de gestas de fidalguia.
Nada de tergiversar romances alheios
me disse
deste calafrio inventarei
neste mais tardar perpétuo
um tal de Pierre Menard
também autor do Quixote.
Canto V
O enigma da biblioteca
ser universal
pode se reduzir a palavras
elas se encontram
fantasiadas difusas
em suas prateleiras gavetas estantes
talismã invisível
para evadir tristezas
com novas pupilas sob um novo
sol.
Alguma vez direi
se alguém leu um livro
o livro é parte desse alguém.
Será textofagia?
Seu humor se cruza
com a Enciclopédia
imperecível cosmos
indomavelmente arquivado.
Meu triplo colega
em mim o evoca
bibliotecário cego e escritor
se pôs em marcha
para me demonstrar sua simples tese
o movimento existe.
Nesse persistente devir
me transporto ao leitor voraz
da biblioteca de Alexandria
imanente em meu mortal talento.
Minha metáfora do vislumbre
da humanidade
hoje é a arte
possuidora força
de eventos e de leis.
Mallarmé confiou-me seus dois segredos
o mundo existe para chegar ao livro
o primeiro sussurrou Borges em mim
o outro clama
o encanto da poesia
está em descobrir pouco a pouco.
Canto VI
Confusão
manhã impossibilitada de bússola
neste extravio acidental
agonia de três noites.
Borges persevera em ser Georgie
em não se dispersar
não enlouquecer
em silenciosos solilóquios.
Sonhemos me impele
sonhemos uma relação de opostos
contradição
entre tempo e eternidade
entre relativo e absoluto.
Um labirinto existencial
está presente em mim
desconcerto
símbolo em nove letras
perplexidade do homem
por encontrar a saída.
Janelas aparentes
fustigadas da realidade
desolado arvoredo
encruzilhada e pacto incerto.
Bifurcações infinitas
curvas exíguas
cadeia ilusória
eternidade escondida no abismo.
Daqui desta cama tormento
libertarei hoje
os olhos gradeados dos tigres
oceanos de relatos
buscando a voz desta terra
regressão da memória
à compartilhadas ficções.
Desde menino
se confessou em mim
estimava surpreender
com fugidias ortografias fonéticas
elas me conduziram
again and again ao labirinto.
Uma tarde Borges se encontrou
ali cara a cara
com um homem
agitado sudoroso
disse a mim chamar-se
Leopold Bloom.
Abatido
havia perdido um dia em sua vida
um 16 de junho de 1904
lento niilismo
fronteira manchada de ambigüidade.
Outra celebração do mundo
começará quando acordarmos
deste sonho único ilimitado.
Canto VII
Duvidemos
este não equilíbrio
poderá produzir coerência?
Mais visões múltiplas
milhares de respostas
é um signo dissimulado.
Borges se transtorna
sonha ser viajante
num ônibus em mim
em direção a Almagro Sul
caminho necessário até a bela
língua.
A Divina Comédia
heresia sublime
da invenção cortês
a ele vai revelando-se
desde os amanheceres
durante nove anos férteis
mágico número diluído
no empedrado portenho.
Que dolce stil nuovo
é esta arte do dire parole per
rima
medieval cántica do tremendo
onde a glorificar a una donna
se salva a vida do poeta.
Esta noite sonhada é a de 7 de
abril
de um momento indestrutível
como aquela de 1300
do homem perdido numa selva
escura.
Nove círculos concêntricos
se abrem de seus pés prostrados
se funde a partir da cadência
a cifra o maravilha
em abismos condenação
castigos tenebrosos.
Se deslumbra
pela lei do contrapasso
para Francesca e Paolo
luxuriosos pecadores
aprisionados para sempre
no quinto canto
aquele da borrasca infernal
que nunca termina.
Borges é Alighieri
que sonha em mim
e se compadecem juntos
do destino dos amantes.
Amor que não perdoa que não amemos
Ouve o desdenhado por Florência
poeta do valor de toda uma vida
num único instante.
Homero foi um sonho de Virgilio
Virgilio do de Dante
Dante do de Borges
vates irmanados
afronta existencial
semblante da razão
e clássica sabedoria
viagem alegórica
para salvar toda a essência humana.
Reinado da pena
reinado da esperança
voltarei à luz
murmurou em mim
e no meu paraíso
disse
nostalgia da oração
os dezessete volumes
das Mil e Uma Noites
estarão me esperando.
Canto VIII
Curioso instante
calmo rosto na vigília
Borges respira aliviado.
Sonha que está em Genebra
a mais promissora
em pequenas felicidades.
Relembra épocas
de vanguardas e
primitivas oscilações
passeando o olhar
por prematuros versos.
Ditoso sonha em mim
as ruas pedregosas
da cidadela
as amáveis livrarias
e seus antigos livreiros
o cantinho do francês genebrino.
Cruza com Abramowicz
se cumprimentam jovialmente
conjurando-se
lapso indestrutível.
Logo voltarão a conversar
a cerca dos cantões
pátria de um e outro.
Borges sonha que caminhamos juntos
nessa sua sublimada cidade
fala de seus antepassados vikings
daquela Londres de G. K. e Father Brown
vagando por entre a imortalidade
coroada
insular urbe et orbe
dos personagens de Shakespeare
das trovas inglesas da avó
Haslam
da espada do avô Borges
coronel de um monte de fantasmas
poncho branco
tordilho ao vento
toque de clarim até a morte
protetor dessa velha virtude argentina
o individualismo.
Fala de compatriotas
de Juan López e John Ward
dos índios dos pampas
evocação das planícies do sul.
Me sugere
mares de campos
o sabor de uma saga
vastidão de um milênio.
Estou disperso em minha obra
suspira
agora meus sonhos são lembrança de
todos.
Centenas de livros
ficaram sem serem escritos
o do vento
o da água
o do fogo
para citar ao algumas elegias.
Te falo sobre computadores
controle razão e redes
ocidental esquizofrenia
do não estamos sós global
do não podemos deixar de
nos comunicar
de internautas arrobando a letra a
tradutora traidora
de uma realidade a outra.
Deixemos exercer
influa-me
são poucos os temas
e sempre os mesmos
uma palavra encerra mil
é só outro instrumento de
metáforas.
Meditemos
sobre a geometria do azar
inato elemento na natureza
temos que retornar a ele
deixamos esquecido.
Seguimos o sentido dos passos.
Diante do espelho do Ródano
trespasso o braço do homem a outra
dama
e vejo-os ir juntos
enquanto ela sussurra no ouvido
logo você saberá quem somos.
Número dez rue des Rois
Cemitério de Plain Palais
silenciosos param.
Aqui Borges sonha
que escolherá ser enterrado
jeito exterior de parque agradável
flores roxas para o olvido.
Quero só ser terra
repete
miscelânea de lama e pó
através de arvores ancestrais.
Entre elas
escolhe a uma If
será uma atalaia
rara conífera
de nome condicional
relembrado do verso kipliniano.
Oxalá possa sua folhagem
manter também
intacta a sua firmeza.
Épica milonga assoviada
ressoa triste
rua abaixo entre as fontes.
Iluminados sonhos
se despedem ao soar o ângelus
se confundirão
com sons de sinos votivos
em lembrança do peregrino.
Esplendor abençoado
prêmios naturais
fronte engalanada
de onde será eterno hóspede.
Borges sonha
que erguerá sua mão
se despedirá de sua amada Maria
este segundo sábado de junho.
O outro deambulará
para sempre
no cibercéu dos poetas.
Canto IX
A voz de minha mãe
me ninando tenta regressar
enquanto recita em castiço inglês
uma novela de C. S. Lewis
me agita me estimula.
Borges se reduz
se contém
desorientado entrevê
em meu sonho
tem que matar o dublê.
Todavia indeléveis palavras
melancólico umbral
de onde só os lábios dela
música amiga
procuram recuperar os verbos
da leitura feliz.
O despertar
vidência transitória
fragilidades flutuações
entre parágrafos de Out of the Silent
Planet.
A ordem pode surgir do caos
quem sabe
as bifurcações
são sempre impossibilidades.
Cada um chegará
a seu próprio epílogo
texto sempre inconcluso.
Fragmentada oscilação
essa da coragem de um falcão praieiro
refere imagens
filmes cíclicos
na mente.
O latino Horácio me ensinou
relembrou em mim em voz baixa
acerca da imortalidade do poeta
do outro
contraditória
terrena desgraça.
Usemos operações casuais
me exorta
é útil nesse parêntesis de vida
se esfumaçam determinismos
o importante é não sentir-se
alienado neste universo.
Despertar recordar
ressuscitar
infinitivos do eu
obriga-se Borges em mim.
Madre Leonor
voz desde a alma
continua lendo
anunciado que começa
a se tornar racional.
Definitivamente
os sistemas estáveis
são um subgrupo
dos instáveis
se quer acreditar.
Único e eterno viajante
de imediato
começa a se dar conta.
Desconsolo alegre
é o instante esperado
Borges me liberta de seu sonho.
Siga o seu
me diz
a poesia é um sem fim oscilante
cúmulo abundância e ausência
multidão e indivíduo pedestre
fragrância de rosa amarela
primeira luminosidade
prelúdio do crepúsculo.
Borges compreende
que compreende
e chora.
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