O SEPULTAMENTO
Saberemos de quê.
Para imprimir certo grau de consistência à minha suspeita sobre a diferença que existe no sabor e no aroma entre os cafés de hoje e de outrora, acionei o Google para me certificar de como se dá seu tratamento atual; especialmente o tratamento seguinte ao da derriça. Derriça, sabemos, é a colheita propriamente dita: a retirada dos frutos das hastes do cafeeiro, manual ou mecânica.
Constatei, então, que, após a derriça, os frutos do cafeeiro são imediatamente submetidos a um processo de esmagamento e lavagem — para que as sementes se separem de suas cascas e de sua mucilagem, passando a ser o café propriamente dito, “café puro”, por assim dizer. Constatei igualmente que, depois do esmagamento e lavagem, ele é seco, torrado, moído, embalado.
Mas eram, justamente, o esmagamento e a lavagem que, se confirmados, poderiam dar base à minha suspeita, e projetar um arremedo de ideia com ares de teoria.
Antes, porém, de falar da ideia e da teoria, uma rápida informação sobre meu conhecimento a respeito do assunto. Derivou da prática na produção do café, desde a muda, passando pelo plantio e chegando à torrefação. É conhecimento empírico, passo a passo.
“Balaieiro” é nome que já designou não apenas o fazedor de balaios, mas também o produtor de mudas de café. Balaio era um utensílio feito artesanalmente de taquaras de bambu, de cinquenta, sessenta litros, utilizado nas lides diárias dos agricultores. Costumeiramente, os balaieiros aproveitavam a miudagem restante das taquaras para fazer uns balainhos pequenos, pouco maior que meia garrafa pet de dois litros. Utilizavam-nos na produção de mudas de café. Vendiam-nas aos produtores de café — aos cafeicultores.
Atingindo, as mudas, uma altura de 25 a 30 centímetros, eram transplantadas nas áreas de cultivo. Aos dois anos e meio, três, por aí, começavam a produzir. A produção plena se dava a partir dos seis, sete, anos.
Fiz “especialização” nisso. Fiz balaio e muda. Transplantei, ruei cafezal, derricei, abanei. Transportei para o terreirão, sequei, ensaquei o café em coco para a venda. Para o uso familiar, pilei, torrei e moí. Comecei aos onze, doze, anos (trabalhar não era prejudicial nem proibido).
Foi aquele conjunto de atividades cafeeiras, já bem distante, aliado ao gosto que nutro por essa bebida, que me levou a pensar do jeito que penso. Vou adiante.
Aquela era a época dos balaieiros; a época do chamado “Brasil Rural”, em que, em torno de 40% da população, vivia no e do campo, majoritariamente com agricultura, diversificada. O café, inclusive.
Ao ser torrado, quer nos torradores rudimentares que se tinham em casa, quer nas torrefações industriais citadinas, ele exalava um cheiro inebriante — que se fazia sentir a grandes distâncias. Não menos inebriante era seu cheiro ao ser coado. Cheiro e gosto faziam a delícia de seus apreciadores.
Hoje, na escala industrial de intensa performance, o café em coco já não existe, de onde minha teoria surge: Inseridos no processo, o esmagamento e a lavagem terão promovido o sepultamento de muito de seu cheiro e de seu sabor — e, quiçá, de um pouco de sua história.
José Izidro Manoel