RAIOS EM BARCOS – Entender para se proteger.

A natureza exige respeito!

 

Quem navega e já esteve no meio do oceano em uma noite escura prestes a enfrentar uma tempestade cheia de clarões de relâmpagos e trovões, sabe exatamente o quanto esse espetáculo é belo e ao mesmo tempo amedrontador. A energia contida em um raio é algo que assusta até o mais experiente dos engenheiros. Durante décadas elaborando projetos e implantando sistemas de computação, comunicação e controles eletroeletrônicos em refinarias, rodovias, siderúrgicas e etc., acabei tendo que desenvolver vários projetos de proteção, tanto em ambientes terrestres quanto marítimos. Por várias vezes tive a oportunidade de testemunhar o implacável poder destruidor desses belos “flashes”.

O nível de tensão de um raio atinge voltagens de milhões, podendo chegar a um bilhão de volts. Suas correntes médias ficam entre 15.000 e 50.000 amperes sendo que muitos atingem a corrente de 200.000 amperes, no entanto correntes próximas de 400.000 amperes já foram observadas. O caminho ionizado dos raios na atmosfera atinge temperaturas próximas de 30.000 graus Celsius, ou seja, cinco vezes a temperatura da superfície solar.

Em meados da década de 1980 li em um Data Book da General Semiconductor Industries Inc, livro este que tenho até hoje, um artigo de Richard D. Winters onde ele dizia que um raio, que podia exceder 200.000 amperes, continha energia suficiente para levantar o navio Queen Elizabeth II com seus 293,5 metros de comprimento por 32 metros de boca e 48.923 toneladas de deslocamento a 60 cm acima do nível da agua. Hoje sabendo que correntes em raios próximas de 400.000 amperes já foram medidas, percebemos que Winters foi até conservador em seus cálculos.

Para exemplificar um raio, imaginemos uma imensa bateria, em que um polo está na nuvem e o outro na terra. Se os dois polos permanecerem distantes um do outro com o ar como isolante entre eles, nada acontece.  Porém se eles se aproximarem ou algo condutor for posto entre eles, acontecerá um curto circuito que no nosso caso seria o raio. Se o polo positivo ou negativo está na nuvem ou na terra vai depender do tipo de raio, no entanto isso interessa ao físico que o estuda, porém não faz muita diferença para uma árvore em um descampado e animais ou pessoas que estejam sob ela ou para uma antena de VHS no topo do mastro e os equipamentos e pessoa dentro da cabine, apesar de haver diferenças físicas e energéticas entre eles. (Para mais informações sobre corrente elétrica do raio, indico essa matéria do INPE neste link: http://www.inpe.br/webelat/homepage/menu/relamp/relampagos/caracteristicas.da.corrente.eletrica.php

O importante a saber é que a terra – no nosso caso, a agua – possui um suprimento “ilimitado” de cargas positivas e negativas e é a nuvem da tempestade quem induz a carga na água. Se uma nuvem com uma grande concentração de carga negativa se aproxima da superfície do mar, uma equivalente quantidade de carga positiva é atraída para a superfície da água embaixo dela. Sendo o ar um bom isolante, nenhuma corrente fluirá entre ambas a menos que a nuvem se aproxime da terra o suficiente para que o ar não consiga mais isolar as duas cargas.

Nesse momento uma carga salta contra a outra provocando um curto circuito que é o raio. Imaginemos que um barco com uma torre ou mastro metálico se interponha entre a nuvem e a superfície do mar. O espaço que deve ser saltado torna-se mais curto e o barco vai curto circuitar as duas cargas, mais ou menos como acontece quando se encosta uma chave de fenda entre os dois polos de uma bateria, e a corrente ao invés de fluir através do ar ionizado fluirá através do barco, procurando o caminho mais fácil, seja ele cabos elétricos e de dados, motores, equipamentos eletrônicos ou qualquer coisa que encontre pelo caminho até atingir a água e se dissipar por completo. Tudo isso em milésimos de segundo.

Os avanços nos sistemas elétricos e eletrônicos revolucionaram a navegação de recreio. A integração desses equipamentos a bordo facilitou a experiência dos navegantes, simplificando o controle, localização e comunicações das embarcações. Os motores diesel que antigamente não tinham nenhuma ajuda eletrônica, hoje para aumentar seus desempenhos e diminuir níveis de emissões, dependem de sofisticados circuitos eletrônicos, sem os quais não funcionam.

Infelizmente todo esse avanço nos sistemas eletrônicos não tem sido acompanhado no mesmo ritmo pelos sistemas de proteção de seus sensíveis circuitos eletrônicos contra descargas atmosféricas nas embarcações de recreio. Nos Estados Unidos a National Fire Protection Association, a Underwriters Laboratories e os setores que são expostos aos riscos provocados por raios, tais como aviação, geração eólica, combustível e telecomunicações chegaram a um consenso sobre a proteção contra raios e adotaram novos protocolos e práticas padronizadas. No entanto a indústria náutica de lazer tem sido lenta em adaptar essas mudanças ao ambiente marinho. Há algumas razões para isso, e as três principais são:

  1. O ambiente agressivo e propício à corrosão, o movimento a bordo dos barcos com as limitações relativas a peso, geometria e espaço, todos esses fatores e muitos outros tornam sua implementação muito mais desafiadora do que em instalações terrestres.
  2. Os órgãos regulamentadores como o American Boat & Yacth Council (ABYC) dão ênfase em proteger a vida, e uma prioridade menor em proteger equipamentos. Salvaguardar a vida deve ser prioritário, mas muitas vezes ela pode depender de um equipamento. Ou o caso de uma lancha ficar à deriva e totalmente sem propulsão no meio de uma tempestade por ter os controles eletrônicos de seus motores danificados por uma descarga elétrica não representa uma ameaça real à vida humana no mar?
  3. Existe um forte desacordo entre os profissionais do setor sobre a melhor maneira de minimizar os danos em caso de raios, assim como há poucos dados precisos para apoiar um ponto de vista em relação a outro. Os profissionais do setor deveriam reunir esforços para chegarem a um consenso científico e prático quanto a normas padronizadas para resolver o problema ao invés de, muitas vezes por interesses próprios, defenderem apenas suas próprias ideias, não raro, carentes de comprovações científicas e práticas, em detrimento de outras mais eficientes.

Para finalizar, não quero aqui dizer que não existam sistemas eficientes para mitigar danos em caso de descargas elétricas. Porem a falta de implementação pela indústria náutica de padronizações precisas e comprovadas por um órgão regulador para proteção contra raios em embarcações de recreio, é frustrante para os usuários que tem os seus barcos em risco.

Basta fazer aterramentos para se proteger? Não!!! É necessário fazer isso corretamente!

Francisco de Assis Gois (Design Engineer – Velejador e Capitão Amador)

 

ChicoDeGois
Enviado por ChicoDeGois em 08/03/2023
Reeditado em 08/03/2023
Código do texto: T7735531
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