CEMITÉRIO DOS DESAPARECIDOS

Quanto tempo dura um morto? Não, não estou a me indagar sobre a deterioração ou a decomposição dos corpos e das matérias vivas. Não me interessa refletir o tempo da degeneração das carnes e dos ossos. Porém, pergunto-me sobre a temporalidade das coisas perdidas, sumidas e desaparecidas no interior da memória humana. Neste sentido, o termo morto aqui é utilizado em sentido mais amplo que somente a morte de alguém conhecido.

Há uma expressão arábica que cita que uma pessoa só morre quando seu túmulo vira pó ou desaparece. Tal expressão faz menção de que, enquanto houver algo que nos lembre ou remeta ao morto, ele de alguma maneira ainda está vivo, porque pode ser recordado.

Sim. A pergunta inicial quanto tempo dura um morto, refere-se ao tempo da existência mnêmica da representação psíquica (lembrança) no íntimo da alma humana. Carregamos em nós, na memória, reminiscências de várias e várias coisas (pessoas, objetos, eventos, acontecimentos, experiências, épocas) pelo que passamos ou que passaram pela nossa vida e agora já não existem mais.

Sei, por exemplo, que tive muitos brinquedos ao longo da infância, mas somente me lembro de poucos, talvez até menos de cerca de 10% do que tive quando criança. Lembro do Forte Apache, do boliche de plástico, de um bambolê vermelho, de um carrinho de polícia movido à pilha, de um pião de madeira, de um autorama, de uma quase dúzia de bolinhas de gude, de um time de botão, lembro até da minha primeira câmera fotográfica com que iniciei minha abortada carreira de fotógrafo que sonhava ser cineasta. E o resto, o que aconteceu com ele que não consigo relembrar? Morreram em minha memória.

Se formos fazer um inventário da vida pessoal encontraremos em nosso acervo de lembranças muitos objetos (traços mnêmicos). Se considerarmos que cada ser humano é como uma casa, com sua fachada externa e ambientes internos, tudo o que psiquicamente habita o cômodo memória são objetos internos. A interligação desses vários objetos forma o que chamamos de identidade, seja ela individual ou coletiva. A memória de um sujeito é um elemento que organiza e estabelece o sentimento de continuidade. E, como em todas as casas, existem objetos que são facilmente visíveis e encontrados, outros não. Às vezes até esquecemos que temos algum objeto em alguma gaveta guardado e esquecido. É comum quando não encontramos algo que estamos procurando exclamar: “perdi tal coisa”, quando na verdade tal coisa não se encontra fora da casa, mas em algum lugar dela que não lembramos onde e não achamos.

Também é comum ao longo da vida irmos desfazendo de alguns objetos, que um dia tiveram sua utilidade, mas que atualmente não tem mais – virou uma quinquilharia inútil a ocupar desnecessariamente espaços. Particularmente nem me lembro mais se tive em meu quarto de infância abajur ou não, assim como sei que em minha casa infanto-juvenil havia uma meia dúzia de quadros pregados nas paredes, contudo me lembro muito mal de dois.

Analogias à parte, pareço encontrar o início da pergunta acima: quanto tempo dura um morto? Lembrando que morto aqui representa tudo aquilo que hoje me é ausente, mas que habita um lugar em minha memória. Neste sentido, o tempo de duração de uma lembrança tem muito a ver com o tempo de duração dos afetos.

Freud traduziu afeto como uma energia, enquanto que a representação psíquica (traço mnêmico) seria a ideia que temos internamente de um objeto externo. A ligação da energia com a ideia faz com que o traço mnêmico (recordação) seja resgatado à nível da consciência como uma lembrança de algo que se lembra. É como uma casa hermeticamente fechada e completamente às escuras em que não vemos nada dentro dela. Todavia ao acendermos uma lanterna (afeto/energia), por exemplo, iluminamos uma parte ou objeto, que, assim, se torna visível, enquanto os demais se acham “apagados” pela escuridão não iluminada.

Um objeto desalumiado (sem nenhum afeto nele ligado) é um objeto que perdeu sua utilidade, ou seja, seu significado afetivo. Não é porque hoje eu me lembre de minha mãe, que perdi quando tinha apenas 16 anos, sem chorar ou sentir o padecimento de sua perda, que a lembrança que tenho dela não me tenha mais nenhuma serventia. Não. O que morreu (apagou-se) em mim foi o luto, isto é, consigo agora pensar no objeto perdido (mãe) sem dor. Isso psicologicamente representa que o luto de sua perda foi suficientemente elaborado e superado. Todavia, levei anos para tal, pois ainda na casa dos trinta anos de idade, emocionava-me (doía) lembrar dela.

Hoje tenho em mim um céu dos sumidos e um cemitério dos meus mortos ressignificados.

QUEIMADAS

Os mortos continuam morrendo

no apagar gradual dos meus dias

Há os que já se foram afogados

pelas inundações do tempo

tossidos das lembranças como se fossem

resfriados ou fumaças exaladas dos

cigarros

Deles apenas lembro que os esqueci

no silêncio do interior fundo da não-

memória

aquele lugar sem rosto rumor ou nome

onde habitam os sumidos abandonados

deixando em seus sítios agora vagos

velhas covas esperando novos

apossados

Em meus pretéritos mais antigos

não me cabem todos os finados

é preciso o cessar de alguns fios

para continuar fiando às lareiras

este tecido tão muito e tanto mal-usado

Mas em mim ainda subsistem incêndios

e o cheiro das carnes queimadas

a me permanecer condenado às

saudades

Quando por fim o último morto partir

não havendo ninguém mais a lembrar

é que vou então deixar de existir

no debelar das fogueiras

e no vanescer da minha história

Joaquim Cesário de Mello

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 04/12/2022
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