MELANCOLIA: A ALMA CINZA
A alma humana é como água, não tem cheiro, não tem cor e nem tem gosto. A alma talvez nem exista de fato, seja pura abstração: uma imaterialidade criada pelo funcionamento do cérebro. A alma, enquanto mente, não ocupa um lugar físico e espacial. Quem ocupa espaço é o corpo. Mas nosso psiquismo tem substância, e a substância mental é constituída de pensamentos, sentimentos e emoções. E tal substância, impalpável, porém viva, encontra-se fincada em um substrato neurofisiológico. É como se fosse os dois lados de uma mesma moeda: o objetivo e o subjetivo. Não há mente fora do cérebro, mas a mente não é o cérebro. Ambos compõem, assim, um todo sistêmico complexo e interativo, onde tanto o cérebro influencia a mente quanto a mente o cérebro.
Desde a Antiguidade Hipócrates já definia quatro tipos distintos de temperamentos humanos, a saber: o sanguíneo, o fleumático, o colérico e o melancólico. Traços relacionados ao temperamento têm tendências disposicionais que levam indivíduos a vivenciarem de maneiras peculiares à sua têmpera estímulos, emoções e humores. O médico e psicólogo Wilhelm Wundt (século XIX), por sua vez, com base na visão de Hipócrates, definiu haver duas dimensões quanto ao temperamento: intensidade das emoções e velocidade das mesmas. Neste sentido, foquemos no temperamento melancólico.
Se observamos com mais atenção os poetas, por exemplos, vemos que os mais significativos poetas de cada época ou geração demonstram em seus versos um ar direto ou indireto de melancolia. De antemão não confundir melancolia com o estado psicopatológico de depressão, embora até início do século XX o termo melancolia estava mais relacionado ao que hoje entendemos como estados depressivos. Assim sendo, a melancolia aqui abordada (tendência temperamental da alma) estará sendo vista como a presença da tristeza no interior vivencial da psiquê humana. Tema que levou Aristóteles a se indagar: “Por que todos os indivíduos excepcionais, na atividade filosófica ou política, artística ou literária, têm um temperamento melancólico?
Sabemos que dos afetos inatos (raiva, medo, alegria e tristeza) a tristeza é a emoção/sentimento que sofre mais discriminação. Até entendemos a raiva e o medo como necessários, de alguma forma e/ou situação, à sobrevivência, porém a tristeza não ocupa tal relevância ou atenuante. Mais isso, por se mesma, invalida sua presença no interior da vida psíquica. Todavia, existem pessoas com uma inclinação um tanto mais constante e persistente a ver a vida, o mundo e até a si própria com certa melancolia. Usualmente chamamos tais pessoas de pessimistas. Entre os filósofos denominados de pessimistas, Nietzsche, Kierkegaard, Albert Camus, Sartre, entre outros, talvez o mais pessimista de todos seja Schopenhauer, pensador que teve forte influência, por exemplo, na visão freudiana.
Na literatura, são vários os exemplos, tais como: Jorge Luis Borges, Dostoiévski, Thomas Mann, Dino Buzzatti, Samuel Beckett, Lord Byron, Charles Bukowski. Voltaire, Henry Miller... Como escreveu o filósofo contemporâneo Alain de Botton, “hoje eu gostaria de avançar em relação à ideia de que seríamos muito mais felizes, se aprendêssemos a ser mais pessimistas”. Realmente, atualmente temos uma visão negativa do pessimismo e da melancolia.
Por outro lado, não podemos olvidar de considerar os avanços do conhecimento científico sobre as bases de muitas posturas humanas. Sim, por detrás do pessimismo e da melancolia podemos encontrar alguma coisa de depressiva do ponto de vista neuropsiquiátrico. É caso da Distimia. O transtorno distímico é um tipo de depressão que se caracteriza pela diminuição do prazer com a vida e com a continuada permanência de pensamentos e sentimentos negativos. Embora seja uma depressão mais leve, pois não impossibilita a pessoa de suas tarefas, compromissos e funções, ela é constante e seus sintomas se arrastam por mais de dois anos. Neste sentido, a distimia é uma depressão de caráter crônico.
Mais do que somente um transtorno, a distimia é uma forma de perceber, interpretar e sentir a realidade de um modo melancólico e triste. Faz parte do dia-a-dia a desmotivação, a negatividade, a diminuição de energia, a baixa autoestima, o mau humor e a irritabilidade. A continuidade e persistência dos sintomas, principalmente ao longo dos anos, vão se misturando a personalidade a ponto de o indivíduo construir a noção de si como alguém “normalmente” tristonho, desanimado e sem alegria. Pode-se, assim, chegar à cultura depressiva, isto é, hábitos, costumes, comportamentos e rotinas depressivas ou alimentadoras de depressão.
Sim, podemos nos acostumar com a tristeza, aliás, podemos, inclusive, descobrir o paradoxo de conhecer a alegria de ser tristes. Poeticamente se poderia dizer: sentir a poesia de ser triste. Uma pessoa costumeira e acostumadamente depressiva não está tão distante do que escreveu Kléber Novartes: “A pior depressão é aquela que criamos. É, por exemplo, reclamar da falta de um abraço depois de se trancar sozinho em casa”.
Seja como for, o espaço aqui é bem pequeno e restrito para tamanho assunto e complexidade, porém, deixemos em aberto a questão. Porém, para mim, a vida não é monocromática. Umas pitadas de rosa, azul, e verde, por exemplo, são sempre bem-vindas, exceto se forem exageradas ou hegemônicas. Aí a poesia, o texto, a literatura, a arte, perdem a profundidade necessária, ficando apenas uma coisa rasa, impregnada de sentimentalismo ingênuo, bucólico e piegas. Afinal, a vida é multicolor, e entre o banco e preto existe também o cinza, que dizem haver cinquenta tons cinzentos.
Que um pouco de pessimismo ou melancolia não seja descartado ou preterido, afinal como já disse Romain Rolland, Nobel de Literatura em 1915, “a vida não é triste. Tem horas tristes”.
QUANDO AS TARDES CHORAM
As tardes parecem intermináveis
quando chovem
O acinzentado do céu escurece o dia
no recolher prematuro do Sol
nas tardes que se dissolvem em lágrimas de saudades
sobre a cabeça das casas, dos homens e das árvores
Toda uma melancolia molhada
escorre pelos ocultos da cidade
no escorregar solitário das almas
e no esvaziar das praças e das calçadas
As tardes quando chovem
trazem o murmurinho dos pingos
e o vento frio dos horizontes
congelando o tempo no entorpecer
sonolento e embaçado dos relógios
As águas das tardes chuvosas
arrastam dejetos pelas ruas
em meio aos desejos interrompidos
e os barquinhos de papel das crianças
flutuando sobre rios que não vão dar no mar
Quando as tardes chovem
o mundo fica em suspenso
apenas para ver o seu chorar
Joaquim Cesário de Mello