Eu Não Tenho Para Onde ir

EU NÃO TENHO PARA ONDE IR

Edmundo Carvalho

O fato, minha gente, é que eu sempre quis ser uma pessoa branca. Desde que eu me entendo por gente. Dito isto, vamos aos fatos, precedidos de breve reflexão sobre as desrazões para esta escrita...Nem é o “Novembro”, dirão alguns. Por que patavinas Edmundo quebra seu jejum desta semiapagada rede social e me surge assim do nada, com um texto esculhambado, confessional, enorme, como costumam ser os seus textos, verdadeiros diagnósticos de que esse rapaz tem algum desequilíbrio mental?

Se a frase inicial lhes pareceu insincera, aconselho que sigam na leitura deste humilde depoimento. Depois, podem atirar fora seu Frantz Fanon e, se possível, também me atirem aos diabos. Não há de ser pior do que a insônia e o café morno que me embalam estas desnecessárias confissões. Mas voltemos aos tais fatos, antes que eles nos escapem. Ou que apareça coisa mais atraente que este textinho despudorado e confessional em sua timeline.

Eu cresci numa família de dez irmãos, sendo o sétimo deles. As cores aqui em casa variam. Tem gente da cor de Nicete Bruno e gente da cor de Hélio de La Penha. (Nem ousem questionar a idoneidade matrimonial de minha mãe, senhora da mais elevada honradez, casada desde os 14 anos, mulher fidedigna, temente a Deus e aos orixás, monogamicíssima esposa de meu pai, um homem que bem merecia o par de cornos, com que infelizmente, ela não lhe ornou a testa!!!). Nesta mestiçagem toda, tem gente de toda cor. E tem gente de cor nenhuma, como eu, que fiquei até os 14 anos pensando que podia ser branco, para descobrir, já na quinta série que isso não era possível, sendo que os últimos 23 anos eu tenho dedicado ao esforço quase desesperado de convencer os pretos retintos de que eu sou negro e que não quero ser empurrado, de novo, rumo ao limbo existencial de quem não tem nenhuma das vantagens dos brancos, mas também já está prestes a mandar à merda os que colocam a minha negritude “em análise”, como se isso aqui fosse o auxílio emergencial ou a culpabilidade do Lula ou a eficácia da Coronavac.

Dito isto, voltemos à quinta série. Eu tinha 14 anos, muito medo, uma bíblia, que eu lia desesperadamente, e a pele mais clara do que alguns dos meus irmãos. Dessa pele mais clara, fui, aos poucos, construindo a fantasiosa possibilidade de manter sempre os cabelos cortados, especialmente depois que ouvi de uma professora que eu, de cabelo curto, passava por branco. Ou por isso ou por aquilo, decidi apostar minhas fichas. Negro eu não queria ser. E carregava certa mágoa de minha avó materna, branca de olhos azuis que casara com meu avô, um homem retinto, para desgosto de muita gente. Com frequência, eu era chamado de “cabelo de todos bichos”, e cresci com o apelido quase em desuso hoje, de “Maçã”, porque nasci bem roxinho e só depois fui dando uma clareada. Pouca gente ainda me chama de “Maçã”, em parte pela guerra que eu mobilizei contra esse apelido quando descobri as razões de sua origem...Como todo mundo, cresci ouvindo que

“ não se deve dizer nome preto”, “ eu sou moreno, preto é o cão”, “ tem negro que até é bonito, se tiver o nariz afilado”, “ aquela sua tia só é negra por fora, mas por dentro a alma é branca, de tão boa que ela é”, ou “sai daqui, cão preto dos infernos”, quando fazia alguma de minhas muitas malcriações. Ou seja, cresci com todas as razões para querer ser branco. E eu quis muito!

Eu lia, emocionado, sobre a boa ação da princesa Isabel, a Redentora, mas ouvi várias vezes, em casa mesmo, que a culpa do cabelo crespo de algumas de minhas irmãs, que dava tanto trabalho pra pentear, era da Princesa. Que se ela não tivesse feito a cagada de libertar os escravos, não tinha tido essa mistura, que “desgraçou com tudo”. De Redentora em Redentora, cheguei à quinta série. Ainda em março de 1997, ouvi da diretora da escola, uma moça distintíssima, que hoje vive na Espanha, que eu era excelente aluno. Isso depois que eu li e resumi pra ela uma biografia da cientista francesa Marie Curie, na revista Ciência Hoje das Crianças. Ela e minha professora de Língua Portuguesa, a conhecida Dora, eficiente secretária do DCIS-UEFS me sugeriram que eu lesse um livro a cada semana. Afinal eu era excelente, disseram. E eu me agarrei a isso com um fervor místico, desses que só os celibatários e os dementes entendem. Para vocês terem uma ideia, isso foi há 23 nos, e eu jamais me permiti, ao longo desses anos, fechar um só ano sem ter lido os sagrados 48 livros, 04 por mês, 01 por semana. Isso significa que daquele ano pra cá, eu posso fechar um ano sem cigarros, sem bebida, ou até sem trepar. No problems. Mas jamais sem o mínimo dos 48 livros. Sei que nunca vou me livrar disso. Talvez eu nem queira... Afinal, aquela era a senha para confirmar o excelente. Só faltava uma coisa para eu me sentir completo naquela escola: que alguém do “ginásio”, especialmente um dos professores, informasse, de preferência na presença dos colegas, que eu era branco. Indícios já tinha: um dia ouvi o porteiro, seu Aloísio, preto retinto, se referir a mim como “Edmundo, um clarinho, do ônibus de Sete Portas”. Era um sinal auspicioso. Vinha de um preto, verdade. Mas já era alguma coisa na minha via crucis racial...

Os meses foram se passando, a confirmação de minha inclusão no desejado panteão da branquitude não vinha, e o pior aconteceu: a professora de Artes, uma mulher negra, nos disse, à queima-roupa que à exceção de Eziel Augusto e Sheyla, toda a quinta B era formada por pessoas negras. Eu desejei que ela caísse morta ali, na minha frente. Me senti um torturado do DOPS que descobria, nos últimos instantes, que seu nome não constava da lista a ser trocada por um embaixador sequestrado. Lembro que calei fundo e achei melhor não perguntar sobre o que eu era, porque o medo de que ela me classificasse negro superava até a possibilidade, distante, de ela me confirmar branco. E passei a odiar Eziel e Sheyla com a calma secreta e impronunciável de quem rumina uma chaga jamais exposta. Ser incluído no grupo das pessoas negras era quase tão doído quanto ser chamado de Roberta Close. E alguns colegas faziam isso com tamanha impunidade que várias vezes me fez pensar em tirar a vida apenas e tão somente na esperança de que se sentissem culpados...

Por algum motivo, parei de prestar atenção a Sheyla, que não era competitiva, nem nada, embora fosse uma estudante razoável. E para minha desgraça, ao contrário do que eu desejava, Eziel era um aluno brilhante. Por mais que nossas notas empatassem, com poucas diferenças, ele tinha a suprema vantagem, a aspiração maior de meus desejos mais fundos: seu cabelo era, indiscutivelmente, um cabelo liso. Mais: formava uma massa uniforme, como um campo alourado de trigo, ao sabor da brisa, que ele jogava pra trás, inconscientemente, enquanto fazia as atividades. Não conto as vezes em que deixei o cabelo crescer um pouco, só para tentar meter os dedos nele de baixo pra cima e jogá-lo para trás com a naturalidade insuspeita com que Eziel fazia esse gesto. Invariavelmente, minha mão ficava presa entre os fios. E quando funcionava, doía, demandando esforço, que denunciava a impostura do gesto, sua artificiosidade. Em uma palavra: inviabilidade. Não havia alisantes disponíveis para mim naquele tempo em que cabelo liso era sinônimo automático de cabelo bom. Tentei babosa, sabão em pó, óleo de rícino, tudo. E passei a estudar cada vez com mais afinco, na esperança de superar Eziel nas notas, já que o cabelo dele na testa era um injusto presente de Deus. E esse foi um dos caminhos que me levou à percepção de que Deus, afinal, não era justo.

Eziel tinha três lindas irmãs, uma casa confortável na rua da escola, com um carro na garagem, mãe branca e pai pastor. Gozava de certo respeito entre os professores e se encaixava perfeitamente nas ilustrações sobre o tópico “Família” num livro de Estudos Sociais ou Educação Moral e Cívica. Eu morava a uma hora de um dos povoados mais distantes da sede do distrito, com uma mãe mestiça de cabelos crespos, um pai alcoolista e em uma casa que nem energia elétrica tinha. Nada disso fazia diferença para mim, mas a loirice daquele cabelo adolescente, sua decantada beleza e o hábito automático com que Eziel jogava o cabelo pra trás sem nem precisar recorrer às mãos era algo que eu invejava com uma força que só não era maior que o ódio que eu lhe devotava. Por duas vezes, sonhei que meu cabelo era liso. Tão liso quanto o de Eziel Augusto. E que eu metia a mão e o jogava pra trás, sedoso, macio, como num comercial de shampoo. Em ambos os sonhos, eu estava na escola e justo nesse dia Eziel faltava. Em ambos os sonhos eu começava a procurar por ele, para mostrar que meu cabelo se igualava ou até suplantava o dele, de tão liso. E em ambas as vezes eu acordei e tentei voltar a dormir, pra ver se sonhava de novo o sonho brancoliso de minha aflitiva e inconfessada aspiração. E por isso mesmo, eu resolvi partir para o ataque. Não a ele, objeto secreto de minha admiração invejosa, mas aos pretos retintos da sala, forma mais óbvia de me distanciar deles e, assim, ser informado que eu era, de alguma maneira, uma pessoa branca. O mecanismo não tem nada de novo e é um expediente psíquico bem rodado em todas as agendas coloniais; como um judeu que atacasse judeus para angariar simpatias do chefe nazista do gueto, eu escolhi o alvo mais evidente: estudantes de uma comunidade negra que hoje eu amo de paixão, chamada Morrinhos, onde tenho muitos alunos, e que eu tenho sérios motivos pra supor que seja remanescente de quilombos. Quando o ônibus de Morrinhos chegava, eu dava sempre um jeito de produzir um comentário tão malicioso quanto violento. “Escureceu tudo”, eu dizia. “Melhor abrir a janela, que o cheiro desse pessoal tá demais”, eu continuava. Não, eu não nego a vocês a vontade que eu sinto hoje de esganar aquele menino que eu era. Mas era exatamente o que eu fazia. E como ninguém me quebrou a cara com uns murros merecidos, eu prosseguia, animado... Se no início, isso gerou riso cúmplice e uma aprovação encorajadora por parte de alguns colegas mais claros, o fato, porém, é que o repertório cansou todo mundo logo. E como não existe limite para a maldade de uma pessoa com os afetos adoecidos, eu resolvi inovar no repertório. Lendo de tudo, encontrei num livro de piadas perdido aqui em casa a criminosa pergunta “Quanto tempo uma empregada negra leva pra jogar o lixo fora?”. E a resposta infame: “nove meses”. Era a consagração! Eu contei isso no ônibus, na sala, nos corredores. E repeti, tendo o cuidado de explicar cuidadosamente a alguns mais lentos no entendimento, para garantir que 1) todos percebessem o quanto eu era capaz de atacar pessoas negras; 2) de alguma maneira isso incitasse pessoas a me compreender, de alguma forma, como não negro. Ou seja, como branco. Ainda que circunstancialmente.

Aprendi com minha avó que não há mal que dure pra sempre, nem bem que nunca se acabe. E aconteceu. Uma colega de turma procurou o professor de História, relatando a ele minha sequência abusiva de ataques, os assédios constantes aos colegas de Morrinhos e até meu desespero em querer ser branco à força. Era uma quinta-feira. Lembro que depois das duas primeiras aulas de História, o professor Gerson Roque me convidou à secretaria, misto de sala de professores e anexo da direção. Ele cruzou as pernas, com uma calça marrom e camisa de tons beges, ajeitou os óculos, franziu a testa com uma indignação mal contida, me fuzilou com um olhar que inspirava medo e respeito e ordenou, sem meios termos: “pare de se matar”. Eu entendi logo o que estava acontecendo e tentei escapar com justificativas tão inconvincentes que ele me fez calar a boca logo em seguida. Me disse que eu era um ótimo aluno, mas tinha tudo pra ser um babaca. E depois de uma exposição prolongada sobre o que é o racismo e o quão violento era tudo que eu vinha fazendo, me passou uma leitura sobre Zumbi dos Palmares, primeiro contato que eu tive com a ideia de uma pessoa negra com alguma importância na história, já que até agora, só pessoas brancas como Tiradentes, D. Pedro, a Redentora ou Marechal Deodoro tinham feito algo pelo Brasil e por mim.

Não pretendo descrever o que eu sentia, além de vergonha, porque provavelmente, o relato soaria falso. Lembro apenas que eu pressionava a unha do indicador contra a mão esquerda, me ferindo e me punindo, enquanto abominava aquele homem na minha frente e praguejava em pensamento contra a colega que encaminhou a denúncia justo ao professor que eu mais tentava impressionar. Mas o fato é que eu entrei branco e saí negro daquela sala, arrastando comigo cinco séculos de história e a obrigação de me esforçar para entender a mim mesmo como tudo o que eu mais firmemente recusara ser até então: uma pessoa negra. Eu estava demitido da branquitude tão ardentemente desejada e saía dali um ninguém. Negro, ele disse. Tão negro quanto qualquer outro negro, mesmo que com a pele um pouco mais clara.

Retomo esse acontecido de 23 anos atrás, porque sou um homem negro, prestes a completar 38 anos, fraturado por várias doenças da cabeça, acumulando histórias sobre pobreza extrema, violência policial, alcoolismo, esforço desmedido pra viver, frequentemente romantizado e apresentado com esse papo desonroso de “mérito”. Comigo, trago muita leitura sobre raça e racismo, desde os pioneiros, até esse pessoal mais recente que importa categoria dos Estêites pra cá e força uma barra pra caber na leitura racial daqui...mas sou também um homem frequentemente convidado a explicar até que ponto sou negro com pele clara, que espécie de negro consciente eu sou, se deixei o candomblé pra trás faz um tempo, que racismo eu sofro, se em alguns locais me chamam de moreno claro, e até mesmo se eu me sinto tranquilo por figurar entre os cotistas na segunda graduação. Não considero necessário recorrer às leituras antropológicas, sociológicas, históricas...e sorta minha perna pra conversar sobre isso. Nem me sinto um impostor quando pronuncio minha condição de negro. Nem quero atualizar a Olimpíada das Opressões, muito menos discutir “colorismo”, “mestiçagem compulsória”, “passabilidade” e outras perdas de tempo. Embora tenha sido condescendente até aqui com quem me considera “afrobege”, “paçoca”, “metido a negro”, “afroconveniente”, “negro às cotas” e outros qualificativos carinhosos, um dos motivos que me levam à escrita deste texto, além de aliviar minhas crises de ansiedade, sem álcool e sem cigarros, é apenas informar que eu não tenho pra onde ir. E que isso ficou evidente pra mim em 1997: EU NÃO TENHO PRA ONDE IR. Sem desabafo, nem pedido de clemência inclusiva, mas se vocês, pretos retintos, que experimentam o racismo de forma diversa da que me afeta, me banirem do afromundo de vocês, isso não compra meu ingresso no mundo dos brancos a que eu tanto aspirei um dia. Ou seja, meus dedos vão continuar enganchando nos fios. E mesmo que eu alise, eles crescerão crespos de novo. O que não pode crescer é meu senso de pertencimento ao mundo racial que eu tão duramente recusei, conheci, reconheci e pertenci desde a adolescência, enquanto a pele um pouco mais clara compor o prêmio, há muito recusado, de minha ambígua condição. Não vai adiantar nada me botar pra fora assim da nossa casa. A casa é a mesma, ainda que ocupemos diferentes cômodos. E isso eu não aprendi só nos livros: guardei isso debaixo de minha pele em cada recusa afetiva, em cada salário baixo, ou salário nenhum, em cada baculejo da polícia, em cada risada sonsa sobre os dreads que eu tive, em cada vez que os orixás que eu cultuo foram chamados de demônios, até por pessoas de quem eu gosto, e em cada vez que eu tive que me esforçar o dobro dos brancos pra tentar acessar coisas que a maioria deles sempre acessou com a naturalidade de quem joga o cabelo para trás. Muitas vezes, sem precisar usar as mãos.

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EDMUNDO CARVALHO
Enviado por Leah Ribeiro Pinheiro em 20/10/2022
Código do texto: T7631545
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