A cor púrpura ou sobre romper os silêncios

A Cor Púrpura, de Steven Spielberg é, com certeza, um dos filmes mais tristes que você vai assistir na sua vida. Sério. O filme é inspirado no livro homônimo da Alice Walker e nele a gente acompanha o diário de Celie e a sua relação com seu marido abusivo, a quem se refere como Mister ao longo da trama - ou Albert, para quem o chama pelo nome. O filme fala, dentre outras coisas, da violência interna das comunidades afroamericanas, da relação da segregação racial com os brancos e de como essas estruturas afetavam, e afetam, as populações afroamericana. Porém, há um componente extremamente forte nessa narrativa, que perpassa ao longo toda a história: Os silenciamentos.

Celie, interpretada por Whoopi Goldberg, é uma mulher negra que sofre todo tipo de violência, desde o abuso do pai, que acaba lhe gerando uma criança, que depois é retirada dela enquanto seu abusador pede pra que não conte pra sua mãe, aos maus tratos constantes que o seu marido, Mister - Senhor -. infringe a ela. O auge desse silenciamento é quando sua única relação de afeto, Nettie, sua irmã, é retirada dela e ao longo de anos, as cartas que ela lhe envia são sumariamente escondidas pelo Mister, numa tentativa de isolá-la do mundo pra que ela seja única e exclusivamente sua escrava. Pois é, não existia afeto nesse relacionamento, só posse.

Outro momento que marca esse silenciamento tem a ver com a personagem Sophie, interpretada pela Oprah Winfrey, uma mulher de caráter forte que não tem medo de revidar se alguém lhe levanta a mão. Em um determinado momento da trama, a esposa do prefeito, uma mulher branca que jura que não é racista pede pra que ela seja sua empregada, ao que Sophie responde: Hell, no!. Essa reação leva o prefeito a lhe dar um tapa na cara, o que, como já disse, ela revida com uma força que o Steven Spielberg faz questão de exagerar! Resultado. Sophie é presa e passa 10 anos na cadeia e ao final desse período, com o espírito totalmente devastado, ela vai trabalhar para a mulher do prefeito.

No entanto, ao final do filme temos o confronto final onde, após descobrir que o Mister escondia todas as cartas que Nettie lhe enviava, Celie decide pôr um basta e dizer tudo aquilo que estava entalado na garganta. A cena vai em um crescendo que começa desde uma fala, tênue, mas raivosa, a Celie apontando uma faca no pescoço de Mister. E é interessante a faca estar apontada para a garganta do algoz, porque simboliza o corte com a voz que a silenciou durante tanto tempo. Essa reação leva Sophie a começar a rir e a dizer que estava de volta e a agir como ela sempre agiu. Enquanto a trama vai se desenrolando e a personagem Celie decide confrontar o seu algoz, percebemos que a personagem Sophie vai se crescendo e crescendo e voltando a ser aquilo que ela era e dizendo que ela estava de volta e que bom que ela estava de volta porque ela colocaria uma ordem naquela bagunça.

Tem muita coisa para falar a respeito desses silenciamentos, o quanto ele faz mal, o quanto ele pode gerar feridas na alma, o quanto ele pode perpetuar violências. Mas tem coisas também que a gente pode dizer a respeito do falar, porque a única coisa que rompe o silenciamento é a ação ousada de se levantar e dizer quando aquilo tá doendo, quando aquilo está errado, ou simplesmente dizer que a gente não tem força contra aquilo, que precisa de ajuda. O silenciamento, além de ser um cárcere, ele encarcera outras pessoas ao redor porque não permite a ação conjunta, a ajuda que poderia vir através de simplesmente dizer eu preciso de ajuda. A personagem Celie viveu durante anos em uma situação de humilhação e quase escravidão porque não falava. Sophie passou 10 anos na sua vida tendo seu espírito quebrado para tirar dela a sua voz, mas a partir do momento em que a Celie conseguiu falar e foi voz que representou todas essas vozes sufocadas, finalmente ela sentiu esse lugar de libertação e pôde voltar para casa.

Lembre-se: não é errado sentir dor e reclamar quando dói. Não é errado sair de relacionamentos que nos sufocam. Pode não ser fácil, mas com certeza tem mais efeito do que continuar com esse ciclo maldito de silenciamento.

Cuide-se.